Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) recorre à justiça brasileira para evitar que parte do desastre socioambiental da mineradora Samarco (Vale e BHP) seja julgado no exterior.
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O Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), que representa grandes mineradoras no Brasil, apresentou ao STF um recurso visando que as ações judiciais movidas em Londres pelos municípios afetados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, sejam consideradas inconstitucionais. Na Inglaterra, o caso envolve 46 municípios e 700 mil vítimas que buscam uma indenização de R$230 bilhões. O Instituto questiona a legitimidade de municípios brasileiros promoverem ações internacionais contra as mineradoras Samarco, Vale e BHP, acusadas de crime socioambiental, alegando que tais ações violam a soberania nacional e o pacto federativo. A anglo-australiana BHP Billiton, uma das acionistas da Samarco Mineração, firmou um acordo no Reino Unido, no qual a mineradora se compromete a não apoiar a ação do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) no Supremo Tribunal Federal (STF).
Em nota, divulgada no dia 23 de julho, no site oficial, o Ibram manifestou repúdio diante da justiça brasileira através de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental -1178 (ADPF). “O processo fere gravemente a jurisdição da justiça nacional, ao peticionar em cortes estrangeiras, de forma concorrente, fatos e seus impactos em julgamento em curso na justiça do Brasil”. Segundo o presidente do Instituto, Raul Jungmann, “os principais argumentos constitucionais para essa medida estão baseados na competência privativa da União para tratar assuntos internacionais.” Jungmann afirma ainda que “Esse comportamento agride a soberania nacional, falta com respeito ao nosso sistema de justiça, rasgando a nossa Constituição, submetendo a soberania brasileira, como nos tempos do Brasil Colônia.” A ação está sendo julgada no STF pelo ministro Flávio Dino.
Em contrapartida, o professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP, Carlos Portugal Gouvêa, discorre em seu artigo publicado sobre o caso que “os municípios brasileiros estão buscando a representação perante tribunais estrangeiros pelos prejuízos sofridos, privando seus cidadãos de serviços públicos essenciais, como saúde, moradia e educação. Se o município sofreu danos, cabe ao município buscar indenização”. Isso porque, segundo ele, a Arguição do Ibram não reconhece o artigo 21, inciso I, da Constituição Brasileira que indica ser competência da União, representar municípios apenas nas relações diplomáticas e assinar tratados internacionais. Na prática, os consórcios dos municípios defendem que o julgamento do caso no exterior não fere nenhum preceito fundamental, o que significa que não há respaldo para a solicitação de uma ADPF. O artigo não faz relação à representação perante o judiciário de uma pessoa jurídica e de direito público, que é o caso dos municípios brasileiros. Vale destacar que são, portanto, entes federativos autônomos.
Entidades brasileiras manifestam revolta contra a ação do Ibram e tentam impedir a aprovação do recurso pelo STF. O Consórcio Público de Defesa e Revitalização do Rio Doce (Coridoce), a Confederação Nacional de Municípios (CNM) e a Associação Nacional das Administradoras de Benefícios (ANAB) afirmam que o Ibram não tem legitimidade para apresentar a solicitação de descumprimento de preceito fundamental. Esses grupos planejam submeter uma Amicus Curiae no STF, permitindo a intervenção de terceiros para apoiar as decisões judiciais. Amicus Curiae é uma ação que permite a participação de entidades ou indivíduos para oferecer informações e argumentos que possam influenciar a decisão do tribunal.
Em nota publicada pelo consórcio, o presidente do Coridoce e também prefeito da cidade de São José do Goiabal, José Roberto Gariff Guimarães, disse que todos os mecanismos jurídicos devem ser usados para a indenização das vítimas do crime socioambiental em questão, ainda que nenhuma vida possa ser reparada. “As responsabilidades por um desastre ambiental e humanitário como o de Mariana têm que ser apuradas, têm que ser levados os responsáveis, caso não assumam, às mais altas Cortes”. Reforçou o prefeito Gariff Guimarães.
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) também criticou a ação do Ibram. A entidade divulgou uma carta ao STF pedindo uma audiência com o ministro Cristiano Zanin. No documento, o MAB acusa o Ibram de usar a ação para promover interesses comerciais das mineradoras responsáveis pelos graves crimes ambientais no Brasil, tentando evitar suas obrigações de reparação. Destaca ainda que a ação é assinada pelos advogados que representam a BHP, a mineradora anglo-australiana envolvida na tragédia de Mariana.
O escritório londrino e a comunidade atingida
A maior ação coletiva ambiental do mundo está em curso em Londres desde 2018, movida contra a mineradora BHP pelo escritório Pougust GoodHead. Esta ação representa cerca de 700 mil vítimas, incluindo 46 municípios, 10 mil membros de comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, além de empresas, igrejas e autarquias. Tom Goodhead, CEO e sócio-administrador global do escritório, criticou a BHP por suas táticas de adiamento, que, segundo ele, visam prolongar o processo judicial. "A vida das vítimas foi devastada e é inacreditável que, quase nove anos depois, eles ainda não tenham recebido uma reparação completa e justa. Essas pessoas estão indignadas com a BHP ", declarou Goodhead em nota do site do escritório.
A postura do Ibram não tem muita credibilidade diante dos atingidos. Mônica dos Santos, 39 anos, faz parte da ação contra a Vale e a BHP e já teve oportunidade de acompanhar algumas audiências da Corte Internacional. Ela conta que confia na assessoria jurídica da Pogust Goodhead e percebe que há esforços e preocupação dos advogados na luta pela tão sonhada reparação integral.
Mônica comenta que não consegue imaginar quanto seria a indenização. “É muito difícil colocar valor em coisas que não estavam à venda e que dinheiro nenhum é capaz de comprar." Para fundamentar o que parece a ela imensurável, conta que a lama de rejeitos levou as fotos que ela tinha do pai, que há 32 anos faleceu. "Para eu lembrar da fisionomia dele era pelas fotos. Como colocar valor, como trazer de volta?" indaga Mônica. "Uma coisa eu tenho certeza, qualquer valor que eu falar ou pedir, as empresas sempre vão está me devendo. Tem coisas que dinheiro não compra, muito menos traz de volta", lamenta a atingida.
Quanto ao pedido de embargo da ação proposta pelo Ibram na Corte Internacional, Mônica falou que teve conhecimento pela imprensa e considera que essa foi mais uma jogada das empresas para se esquivar do julgamento, além de tentarem enfraquecer o processo no exterior. “Pode ter certeza que elas vão tentar fazer muita coisa para atrapalhar, estamos lidando com mineradoras mais sujas. O que mostra a cada dia mais que não aprenderam nada com o crime que cometeram. Continuam colocando o lucro acima de tudo. Elas preferem pagar para se esquivarem das responsabilidades do que pagar o que realmente nos deve”, destacou Mônica.
Contexto do Caso
O rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, Minas Gerais, ocorreu em 5 de novembro de 2015 e deixou 20 pessoas mortas, entre elas o bebê de uma grávida que não teve o aborto de seu filho reconhecido pelas mineradora. Além de comunidades inteiras destruídas, muitas sem trabalho e uma extensa devastação socioambiental. A avalanche de lama tóxica contaminou a bacia do Rio Doce, causando o maior desastre ambiental da história do Brasil e, com rejeitos da mineração de ferro, a maior do mundo em extensão territorial afetada. Desde então, BHP e Vale, as proprietárias da Samarco Mineração têm enfrentado litígios e ações legais no Brasil em cujos processos as vítimas buscam por justiça e reparação pelos prejuízos. Mas que no entanto se arrastam por muitos anos.
No exterior, em relação ao desastre, o escritório de advocacia Pogust Goodhead, impetrou ação apenas contra a BHP Billiton, uma empresa anglo-australiana, com sede na Inglaterra e Austrália. Na edição de julho de 2022 do The Guardian, a imprensa britânica considerou o litígio como a "maior ação coletiva da história jurídica inglesa".
Em 2020, a ação foi temporariamente suspensa por um juiz inglês que argumentou que, mesmo com a sede da BHP em Londres, a competência para julgar o caso seria da Justiça brasileira. No entanto, em 2022, o Tribunal de Apelação da Inglaterra decidiu que havia jurisprudência no país para tratar do caso. Essa decisão abriu um novo prazo para o processo, cujo julgamento está programado para ocorrer em outubro deste ano, trazendo uma nova perspectiva para as vítimas do desastre.
Reação e Consequências
O Ibram argumenta que a decisão de permitir ações internacionais poderia prejudicar a administração pública e a transparência, sob a alegação de que essa ação daria margem para que a jurisdição de outros países pudessem interferir em questões brasileiras. O instituto conta com o apoio de outras mineradoras e setores da indústria, como a Vale, a Samarco e a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração - CBMM. O curioso é que não conta mais com a da mineradora estrangeira envolvida no caso. Em um acordo recente, entre a BHP e o Pogust Goodhead, ficou estabelecido que a mineradora não financiará nem apoiará a ação movida pelo Ibram no STF. Em nota publicada pelo próprio escritório, em troca, a BHP compromete-se a evitar penalidades severas, incluindo multas, apreensão de bens e até prisão, se incitar ou apoiar o Ibram.
O STF ainda não decidiu se aceitará a ação do Ibram como parte legítima no processo. O novo relator, juiz Flávio Dino, solicitou informações adicionais sobre os acordos entre prefeituras e advogados internacionais, com a participação de nomes influentes como a ministra Ellen Gracie e o ex-AGU José Eduardo Cardozo.
Os municípios representados pelo consórcio, como Mariana, Ouro Preto e Governador Valadares, protestam contra a ação do Ibram, alegando que esse tipo de medida há 4 meses do julgamento em Londres pode afetar diretamente no veredito da corte britânica. Além disso, também é questionada a legitimidade do Ibram para propor a ADPF. Em nota, o consórcio afirma que o Ibram busca forçar os municípios a aceitar acordos de reparação nos quais não têm participação. Isso porque o processo de reparação do desastre da Barragem de Fundão, em Mariana, é regido pelo Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) e não contempla integralmente os interesses dos atingidos pelo crime ambiental.
O TTAC foi firmado entre as mineradoras responsáveis, a União e os governos de Minas Gerais e Espírito Santo. Com base nesse acordo, em junho de 2016 foi criada a Fundação Renova, responsável por gerenciar mais de 40 programas, com as mineradoras arcando com todos os custos relacionados às medidas judiciais de reparação.
O tempo de uma justiça que não chega
Após quase nove anos, que se completam em novembro próximo, a atuação da Fundação Renova, criada para reparar os danos, tem sido alvo de várias contestações judiciais. Desde 2022, está em andamento uma tentativa de repactuação do processo de reparação, com o objetivo de resolver mais de 85 mil processos relacionados ao crime ambiental. Consórcios de municípios, como o Coridoce, alegam ainda serem escanteados nas negociações, e se dizem insatisfeitos com os valores oferecidos pelas mineradoras que ainda não satisfazem a União e os governos dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
No Brasil, as negociações para um acordo entre as empresas, a Advocacia Geral da União (AGU) e os estados afetados estão em andamento há um tempo. Ao longo de 2023, as mineradoras se propuseram a pagar o valor necessário ao longo de 20 anos a partir da data do rompimento da barragem, mas o acordo não foi fechado com a Repactuação.
As empresas fizeram uma proposta de mais de R$ 72 bilhões desde seus investimentos iniciais para a reparação dos danos causados pelo desastre. A AGU recusou, sob o argumento que o valor não seria suficiente em paralelo ao tempo estabelecido para o pagamento.
Já em junho, a União fez uma contraproposta de R$109 bilhões em indenizações. A petição, submetida ao desembargador federal Ricardo Rabelo, ainda enfatiza que o valor de R$109 bilhões não inclui os gastos já realizados pelas mineradoras até então.
O documento, assinado pelos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, ainda prevê que o valor deve ser pago em 12 anos. O Ministério Público Federal, a Defensoria Pública de Minas Gerais e do Espírito Santo e a Defensoria Pública da União endossam a contraproposta.
A AGU estima que o valor necessário para reparação total dos danos e compensações é de R$126 bilhões, mas na contraproposta indica que a União e os estados estão dispostos a negociar com as empresas envolvidas, caso o valor de R$109 bilhões seja aceito.
O acordo recente entre a BHP e o Pogust Goodhead evidencia a complexidade e a importância das disputas legais associadas ao desastre de Mariana, bem como os riscos que as mineradoras correm diante do veredito de Londres. Esta resolução pode ter um impacto significativo na forma como desastres ambientais são tratados mundialmente, evidenciando a necessidade contínua de justiça e compensação adequada para as vítimas e reparação pelos danos causados.
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