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Caio Duarte

Carta ao Leitor | A extensão no jornalismo potencializa conhecimentos e memórias populares

Atualizado: 9 de nov.


Durante décadas, a academia se trancou entre os muros da universidade, cercada por seus pensadores, cursos, pesquisas, congressos e fóruns. O saber cultivado e reconhecido ali, raramente vinha de uma dona de casa, de um pescador, de um indígena ou de um quilombola. Refletir academicamente sobre as realidades dessas pessoas seria, como podemos dizer, um pequeno luxo concedido apenas a determinadas classes sociais. 


Mas como pensar uma universidade que não leva em conta as pulsões locais, os saberes consolidados, as dúvidas, os anseios, os medos, as reclamações, as lutas reveladas nos pontos de ônibus, na fila da lotérica? Como construir conhecimento e reflexão, sem levar em conta os que emanam de fora dos muros da academia? Como posso pensar a identidade de um grupo se eu não partilho das suas memórias e dos seus conhecimentos? Como eu posso deixar uma ilha sem considerar a maré, o vento e as ondas do mar? 


Não dá para falar em extensão universitária sem pensar em uma universidade que necessite, convide, agregue e traga realidades diferentes para um mesmo local, reconhecendo-as como tão essenciais quanto a sua. Na prática, a extensão universitária utiliza sua estrutura e seus conhecimentos para, em primeiro lugar, aprender o que não sabe e acha verdadeiramente indispensável para a construção do seu saber. Com esse contrato de trocas bem estabelecido, resta potencializar os saberes locais, em diálogo com lideranças comunitárias, povos tradicionais, escolas, artistas, trabalhadores, artesãos, produtores culturais.


Em Memória e Identidade Social (1992), Michael Pollak reflete que a identidade de um grupo ou indivíduo depende diretamente da maneira como registram, ou esquecem, certos eventos ou experiências. Decerto que quem escreve, escreve de si e das memórias que partilha, e não dá para ignorar, ou não fazer parte das memórias constituídas fora do âmbito acadêmico. Por essa via, a curricularização da extensão vem para incluir as atividades extensionistas nas matrizes curriculares dos cursos de graduação, considerando a indissociabilidade da extensão, do ensino e da pesquisa. É um avanço inegável para romper com a separação ainda existente da universidade com a comunidade que a cerca. 


De todo modo, se as experiências partilhadas no âmbito acadêmico não dialogam com as múltiplas realidades que se derramam cotidianamente no entorno da universidade, essa memória construída dentro da ilha ignora toda memória que o oceano pode guardar. 


A partir de uma crítica ao pensamento mecanicista da educação, que prega pretensiosamente a mera transferência de tecnologia e o assistencialismo social, Paulo Freire, em seu livro Extensão ou Comunicação, de 1992, propõe uma virada educacional dentro de uma perspectiva emancipatória, como um potente ato de liberdade. E é através das experiências concretas da vida cotidiana dos trabalhadores, das comunidades, de suas leituras de mundo e da produção de sentidos que elaboram, que vem o pontapé inicial para a prática da extensão. Ou seja, não basta falar do terrorismo de barragem na cidade de Mariana, do projeto de expansão da Samarco, da saúde mental dos atingidos, do desrrespeito com comunidades devastadas se não estivermos dispostos a ouvir quem melhor sabe falar sobre isso. É conhecendo as histórias do produtor rural Marino D’Angelo, da garimpeira tradicional Dona Ivone Pereira e de tantas outras pessoas que ajudaram a construir essa edição do Lampião, que podemos dizer que hoje caminhamos um pouco mais rumo a uma universidade territorializada.


É nas realidades sociais das memórias coletivas das comunidades locais que a extensão se propõe a aprender junto, criar junto, lembrar junto. Grifar e ressaltar memórias que foram apagadas, soterradas, ignoradas. Estender ou extensionalizar para fazer parte, aprender, trocar, sempre para agregar. Ao passo que, enquanto eu faço dessa realidade a minha também, eu a habito, moro, estabeleço laços, elaboro novas histórias com e não pretensiosamente para alguém. Passamos a construir juntos, barcos, para navegar o oceano que eles conhecem tão bem, melhor do que eu, e fortaleço também a minha ilha. Desfaço as barreiras e construo um porto seguro, um território político, uma ponte, vínculo,  um farol, nunca meu, mas de todos nós.

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