Os dados do IBGE contabilizam somente as uniões registradas em cartório, desconsidera as uniões estáveis não oficializadas
Toda história de amor, nos contos de fadas, termina com o sonhado “felizes para sempre”. Na ficção tradicional, esse desfecho envolve um casamento e um casal feliz. Na vida real, por muitos anos, o casamento de “papel passado” era apenas para casais heteronormativos. Dados publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em março deste ano, sobre as Estatísticas do Registro Civil no Brasil, indicaram um aumento de casamentos registrados no cartório entre pessoas do mesmo gênero.
Os dados são contabilizados a partir de 2013, quando o Estado brasileiro reconheceu juridicamente essas uniões, dois anos após a deliberação do Supremo Tribunal Federal (STF), que permitia a união estável dos casais. Apesar do aumento significativo no Brasil e em Minas Gerais, nas cidades mineiras de Mariana e Ouro Preto essa tendência não se repete.
No estado de Minas Gerais, o número de casamentos civis entre casais homoafetivos cresceu cinco vezes mais comparado ao número de casamentos heterossexuais, que caiu 10% no mesmo período. Para saber o total das uniões LGBTs em Mariana e Ouro Preto recorremos tanto aos dados do Registro Civil do IBGE quanto aos cartórios locais . O Instituto dispõe de dados que registram as uniões apenas até 2022, com os cartórios conseguimos completar os anos de 2023 e 2024.
Em Mariana há pouca procura dos casais homoafetivos pelos cartórios e constam apenas 33 registros dessas uniões nos últimos dez anos. As informações também indicam que em Ouro Preto entre 2013 e 2022, apenas dezessete casais de homens gays e 12 casais de mulheres lésbicas haviam registrado a união em cartório na cidade. De 2023 pra cá, o cartório de Registro Civil do município informou que registrou só mais cinco uniões homoafetivas realizadas na cidade sede, os cartórios localizados nos distritos não deram retorno. Além disso, os dados disponibilizados não têm distinção entre os gêneros dos casais.
Os casamentos homoafetivos somados nas duas cidades não acompanham também o crescimento estadual. Em Minas, houve um aumento de 235% nas uniões entre casais do mesmo gênero de 2014 a 2022, enquanto em Mariana e Ouro Preto esse acréscimo foi de 125%. Apesar da alta porcentagem, em números absolutos isso significa que Mariana foi de três para quatro uniões civis desse tipo; e Ouro Preto de uma para cinco
Eles desejam um final feliz daqueles de cinema
Fabrício Lima, 38 anos, empresário, e Ricardo Pereira, 42, enfermeiro, se conheceram em Ouro Preto em 2011, mas há um tempo já conversavam em um chat de relacionamento. Dois anos depois do primeiro encontro, decidiram morar juntos e oficializaram a relação estável, porque na época o Estado brasileiro não reconhecia o casamento entre dois homens. A decisão de casar veio naturalmente, eles queriam ter a segurança de construir um patrimônio juntos e de não desamparar o outro em caso de alguma fatalidade.
Em 2019, eles foram o único casal de homens a se casar em Ouro Preto, segundo os dados do IBGE e do cartório local. Os dados locais da cidade mostram que a média dos casamentos entre pessoas do mesmo gênero dos últimos dez anos é de três uniões desse tipo por ano. O ano com mais registro foi 2018, com nove matrimônios homoafetivos contabilizados, sendo sete destes de casais formados por homens gays.
A cerimônia que marcou a realização de um sonho de Fabrício Lima foi celebrada em um tradicional restaurante da cidade na companhia de amigos e familiares, e com quitutes e lembrancinhas preparadas por ele mesmo, que é confeiteiro: “foi o dia mais feliz das nossas vidas,, aquele momento foi muito especial”, conta.
Foram dois anos planejando cada detalhe: “Mas a gente tinha um medo, né? Será que a família vai vir?”, questionava Ricardo. Todos os fornecedores da cerimônia foram avisados com antecedência que se trataria de um casamento gay, para que não houvessem constrangimentos, e no dia tudo foi perfeito. “Alguns convidados perguntavam se algum de nós dois ia se vestir de noiva, teve um garçom que falou com a gente no dia ‘meu sonho é poder um dia fazer isso, mas eu não posso me assumir”, lembrou Fabrício.
Fabrício é ouropretano e seu processo de aceitação da sua orientação sexual foi tranquilo, inclusive contou com o apoio da família e amigos, conforme destacou. Mas ele entende que esse processo não é simples para todos. “Nós não podemos esquecer que o gay, negro, periférico, afeminado, sempre vai ter muito mais dificuldade. A gente nunca esquece dos nossos privilégios, a gente faz parte de um recorte na sociedade que às vezes pode fingir que nos aceita, ou até aceitar um pouco mais”, diz.
O casal também percebe que o poder econômico é um ponto chave para a decisão ou não de realizar uma cerimônia. Eles tiveram a oportunidade de passar anos economizando para custear o casamento do jeitinho que sonharam: com arranjos de flores brancas, participação da Orquestra Ouro Preto e uma festa para duzentas pessoas no casamento que foi celebrado por uma amiga.
“Na minha opinião, passa muito pelo viés econômico. Quando a gente fala de casamento, a gente pensa logo em uma festa, e depois da pandemia os custos de fazer uma festa triplicaram”, conta Ricardo, se lembrando de outros casais de amigos que desistiram de fazer a cerimônia por conta do custo. “Em um casamento hetero tem aquela tradição de que a família da noiva muitas vezes banca. No nosso caso, a gente pagou tudo do nosso bolso, então o fator econômico é muito importante”, completa Fabricio.
Esses recortes de gênero, cor e classe são intersecções que podem dificultar a decisão pelo matrimônio de casais do mesmo gênero. Os efeitos aparecem já no momento de assumir ou não a orientação sexual, como mostram dados da Pesquisa Nacional de Sáude (PNS) de 2019, a mais recente divulgada pelo IBGE, ainda em caráter experimental. Isso significa que por se tratar de uma pesquisa nova o número de pessoas que responderam foi baixo, por isso o Instituto adverte que os resultados são preliminares. A PNS mostra que a maioria das pessoas que se identifica como homossexual têm acima do ensino fundamental completo, mora na região sudeste do país, tem entre 18 e 25 anos, e declara renda de três a cinco salários mínimos.
Elas dizem mais “sim” no cartório
Os dados da Estatística do Registro Civil indicam ainda outra diferença: no Brasil e em Minas Gerais pares formados por cônjuges femininas se casaram 86% mais que os casais formados por homens. Em Ouro Preto, porém, essa realidade se inverte e a cidade contabiliza mais casamentos entre casais masculinos. Dos 29 registros na cidade, contabilizados pelo IBGE (2013-2022), 17 são de pares formados por dois homens.
Em Mariana, no total há menos casamentos homoafetivos que em Ouro Preto. Os dados do Registro Civil mostram que, até 2022, 23 casais disseram “sim” no cartório. Outra diferença nos números entre as cidades são os casamentos entre mulheres, mais de 53% das uniões LGBTs em Mariana são de mulheres lésbicas. Quem em breve vai entrar para essa estatística é a matogrossense Thainara Castilho, 28, e a baiana Verena Pereira, 30.
Em uma noite de quinta-feira seus olhares se cruzaram na tradicional Feira Noturna da cidade, no bairro Barro Preto. Na época, Thainara era vendedora de brigadeiros gourmet e, quando avistou uma moça de touca na barraca de crepe, foi amor à primeira vista. “A primeira vez que eu a vi eu já fiquei encantada, eu falei: “ é ela!”, e Verena brinca: “eu estava de touca, a maior cara de sapatão trabalhadora, ela gostou.”
A pracinha do Barro Preto, onde o amor do casal aflorou, passou a ser palco de pagode aos domingos. As duas então começaram a trabalhar juntas na barraca de crepe de Verena, e Thainara aproveitava a oportunidade para vender seus produtos e claro: conhecer melhor a mulher por quem tinha se apaixonado. O namoro começou rapidamente, em dezembro de 2019. Em março de 2020, início da pandemia, elas foram morar juntas.
Diante do isolamento social da COVID-19, Verena, que além da creperia, trabalhava com marketing digital, deu a ideia para a namorada começar a fazer donuts e vender pela internet.“A Verena falou assim: 'Vamos abrir um negócio que não tem em Mariana? Vamos fazer uma donuteria? Quê que você acha?' Aí eu falei assim: eu sei fazer bolo, eu sei fazer cupcake, eu sei fazer qualquer coisa olhando a receita. Peguei a ideia dela, e a partir dessa ideia a gente abriu uma empresa juntas”, conta Thainara. A junção de talentos da confeiteira e da estrategista em marketing ajudou o casal a vencer os obstáculos financeiros, a superar a fase mais crítica da pandemia e firmou ainda mais o relacionamento.
O noivado do casal já está próximo de completar três anos. O pedido feito por Verena simboliza o desejo de construir uma família e oficializar a união das duas. “E eu não tenho o modelo de casamento na minha família. E eu gostaria de criar o meu modelo de família, né? Eu, Thainara, dois dog e um filho”. E Thainara, que cresceu em uma família tradicional sonha em continuar o legado de amor que recebeu dos pais: “tenho muitos princípios em relação à família, o legado de amor que você deixa é a família, né? Porque é o que a gente quer, né, vida?” , pergunta pra Verena que também concorda.
Apesar de terem sido bem recebidas pela família uma da outra e de terem uma boa rede de amizades em Mariana e em suas cidades, o casal conta que às vezes acontece de terem que enfrentar preconceito: “a gente passou por uma situação, mas a gente não conseguia identificar o que era de fato. A gente não sabia se a pessoa tava sendo preconceituosa, homofóbica, e ela tava sendo racista também”, conta Verena.
Casamento por amor e por direito
A baixa procura pelo casamento por casais do mesmo gênero em Ouro Preto e Mariana não passa por nenhum impedimento jurídico. Alexandre Bahia, vice-Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-MG e professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), garante que não há nenhuma barreira legal para que essas cidades não registrem aumento nesse número de casamentos, já que desde 2013 Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deliberou favoravelmente sobre o casamento homossexual e determinou que todos os cartórios em território nacional devem oficializar os matrimônios. “Pode ser que haja elementos de tradição, preconceito arraigado, que faz com que as pessoas não se valem dessa possibilidade. Mas, do ponto de vista do direito, não há nenhum impedimento”, explica.
Ele defende também que “casamento é uma questão de tradição, por mais que muitas pessoas vivam bem e tenham união estável, o casamento traz benefícios jurídicos. E no caso das pessoas LGBT, isso é uma bandeira, porque era proibido, então é uma conquista de direito para aqueles que querem se submeter a isso.”
Depois de quatro anos morando juntos, a decisão de casar também veio naturalmente para Paulo e João, moradores de um distrito de Ouro Preto. “A gente já mora junto, a gente já tem uma casa, a gente já conhece um ao outro, já amamos os defeitos de um e do outro. Então por que não casar? Até pouco tempo tinha esse preconceito e a gente não podia. Já que agora pode, porque é nosso direito, por que não?”, conta Paulo, 29, que se casou no último dia 06 de setembro com João, 38. Paulo e João são nomes fictícios usados para preservar a imagem do casal, que já passou por casos de homofobia onde moram e optaram por preservar sua identidade.
Eles se encontraram pela primeira vez na Praça Gomes Freire, o “Jardim”. O casal se viu pessoalmente depois de um mês conversando por mensagem em um aplicativo de relacionamento. No dia 14 de abril de 2019, Paulo sentiu de cara que João seria a pessoa com quem ele iria se casar e, por isso, já no primeiro encontro o pedido de namoro veio. “Eu lembro que foi no domingo e ele precisava vir embora porque é de outro distrito de Ouro Preto. Aí tava dando 18:30 da tarde e eu também iria embora para minha cidade, que é aqui perto. Às 19:00 eu falei: 'meu Deus! É agora ou então nunca mais vou ver ele.' E pedi ele em namoro. Ele aceitou e a gente nunca mais largou um do outro”.
Onze meses depois do início do relacionamento, o casal juntou as escovas de dente e foram viver no distrito de Ouro Preto onde João morava. A escolha de viver juntos veio diante da pandemia de COVID 19 que pegou todos de surpresa. Paulo tinha ido visitar João quando recebeu a notícia de que o Brasil entraria em Lockdown. “Eu falei: e agora?”. Ele respondeu: “fica aí”. Eu fiquei e nunca mais fui embora”.
Na sexta-feira, dia 6 de setembro, o casal teve seu final de contos de fada, com um casamento civil. A cerimônia planejada com muito carinho será celebrada no próximo mês em um sítio com a presença de família e amigos, que juntos vão comemorar essa aliança de um amor que por tempo demais foi cerceado pelo Estado brasileiro. Ainda hoje, dez anos depois da decisão do Conselho Nacional de Justiça, o casal, como outros, comemora a conquista mas sente medo de ser discriminado, já que sequer existe uma lei que os proteja e garanta o direito e a segurança efetivas de estarem e serem um casal onde bem entenderam.
Urgência de legislação
Mesmo que as estatísticas do Registro Civil divulgadas este ano mostrem que os brasileiros e brasileiras no geral, independente da orientação sexual, têm preferido outras formas de união, ao invés da tradicional certidão de casamento assinada nos cartórios, o ato de se casar vai além de poder expressar amor. O reconhecimento de uma união perante o Estado garante direitos compartilhados na vida a dois como: plano de saúde, pensão em caso de fatalidade, comunhão de bens, e facilitação para adoção de crianças.
O professor e advogado Alexandre Bahia ressalta que a decisão do STF, apesar de ser um importante marco para a população LGBTQIAP+, não garante direitos. Para isso, ele defende que é preciso vontade política em âmbito municipal, estadual e federal para que sejam criadas leis que assistam essas pessoas em todas as esferas sociais: saúde, segurança e garantia de direitos civis.
No ano passado, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 580/07 que proibiria o casamento homoafetivo no Brasil. O PL foi aprovado na Câmara dos Deputados com cinco votos favoráveis e doze contrários, mas não seguiu para o Senado. Por isso, essa falta de leis gera insegurança nos casais, que temem que alguma decisão possa voltar atrás no direito tardiamente conquistado. Fabrício Lima e Ricardo Pereira, por exemplo, contam que sentem medo de em algum momento haver uma legislação contrária ao casamento deles, realizado em 2019, em Ouro Preto.
Paulo, que já estava noivo e organizando o casamento quando o projeto de Lei foi aprovado na Câmara, ficou com medo de não poder realizar seu sonho. “Independente se acontecesse ou não, eu não iria casar no civil, mas a cerimônia existiria independente. É mais uma vez tentando apagar quem eu sou né, qual é a minha história. Mas ainda bem que a gente, em passos lentos, estamos evoluindo enquanto sociedade”, desabafa.
Para Alexandre Bahia, essa votação foi “um retrocesso inaceitável que o Congresso Nacional, além de não legislar a favor, ainda busque legislar contra. Isso viola a constituição. Me parece que isso é muito mais feito para gerar burburinho entre uma base conservadora que vota nessas pessoas”, disse.
Bahia faz ainda um recorte de camadas dentro da sigla LGBTQIAP+: “Quando se pensa em casais homoafetivos, a gente tá pensando ainda no casal de dois homens cisgênero, duas mulheres cisgênero. Mas quando você pensa em casais formados por uma uma mulher trans e uma mulher cisgênero, ou uma travesti com um homem cisgênero, quando se envolve pessoas trans ou travestis nessa equação, por exemplo, se ainda tem muito preconceito, muita discriminação, muito mais do que com casais cisgênero”, explica.
Em âmbito municipal, o professor cita o exemplo do CRA LGBTQIAP+ de Ouro Preto, que é uma importante iniciativa para promover o acesso à consultas com psicólogos, advogados e assistentes sociais, além da possibilidade de tratamentos hormonais para transição de gênero.
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