Em 2024, pela nona vez consecutiva, Mariana se destaca entre as cidades mineiras na gestão do seu patrimônio material e imaterial, como mostra a pontuação alcançada no ranking deste critério do ICMS, mas no critério Turismo, a Primaz de Minas nem pontuou.
O ICMS corresponde ao imposto que compõe o valor de cada produto ou serviço em circulação nos estados do Brasil. A Constituição Federal prevê que 25% do valor total arrecadado por cada estado seja repassado mensalmente aos municípios. Definido como ICMS cota-parte, essa transação é a maior transferência dos estados aos municípios e é tida como uma fonte orçamentária essencial para as cidades.
Em Minas Gerais, a porcentagem desse repasse é feita a partir de 18 critérios definidos pela Lei Robin Hood (18.030/2009). Estes critérios referem-se a setores que impulsionam a economia e sustentabilidade do estado, como Educação, Esportes, Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Produção de Alimentos, Recursos Hídricos e Turismo, entre outros. A Fundação João Pinheiro realiza o cálculo do repasse do valor do ICMS para cada município a partir das pontuações realizadas em cada critério.
Os critérios de repasse são avaliados de acordo com uma série de dados e informações compiladas pelos municípios e encaminhadas aos órgãos estaduais. São consideradas análise de projetos, investimentos, organização e estrutura que a gestão municipal realiza de cada um dos setores contemplados nos critérios estabelecidos pela Lei Robin Hood. A partir disso é gerada a pontuação que indica a posição da cidade no ranking e, consequentemente, o percentual do repasse a que o município tem direito em cada critério.
Por ter alcançado a primeira posição no ranking do Patrimônio Cultural em 2023, Mariana já recebeu, entre janeiro e julho deste ano, mais de R$500 mil reais em repasses feitos pelo Governo do Estado de Minas Gerais. Essa posição consolidada em Patrimônio Cultural contrasta com os últimos três anos em que o município ficou fora do ranking do ICMS Turismo.
Mariana, desde 1995, ficou em primeiro lugar no ranking do ICMS Patrimônio Cultural por 17 vezes, à frente de todos os outros 840 municípios mineiros inscritos, inclusive de Ouro Preto, cidade tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e considerada Patrimônio Mundial pela Unesco. Já a cidade de Ouro Preto destaca-se no ICMS turístico, ocupando a liderança no ranking há sete anos. Das 15 edições que houve repasses do ICMS no critério Turismo, Mariana foi contemplada apenas cinco vezes e, ainda assim, sem ocupar a primeira posição uma vez sequer.
De acordo com o Coordenador de Patrimônio Histórico da Prefeitura de Mariana, Lélio Pedrosa, o valor repassado para a cidade é aplicado em conta bancária e destinado exclusivamente ao Fundo Municipal de Preservação ao Patrimônio Histórico. Segundo Pedrosa, uma parcela do valor do Fundo está sendo destinada à reforma emergencial da Igreja Nossa Senhora das Mercês, localizada no centro histórico da cidade. Por apresentar riscos em seu telhado e torre principal, o valor da reforma, estimado em 500 mil reais, foi destinado pelo Fundo como urgência antes do período de chuvas para evitar o colapso dessas estruturas.
Semelhante ao ICMS critério Patrimônio Cultural, que está sob direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), o critério Turismo - que é gerido pela Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult-MG) e pelo Governo de Minas, possui itens de análise sobre a estrutura da gestão municipal para o setor que são classificatórios. Dentre os eliminatórios, para entrar no ranking dos benefícios, é necessário que o município possua um Conselho Municipal responsável por organizar estrategicamente os setores específicos, assim como um Fundo Municipal implantado com capacidade para gerir os recursos das respectivas áreas: Patrimônio Cultural e Turismo.
Apesar de ser definido por lei, a implementação dessas instituições não ocorre no setor do turismo em Mariana, fator que desclassificou a cidade no ranking do ICMS Turismo, de acordo com dados da Secult/MG. A documentação enviada para a Secretaria sobre o Conselho Municipal de Turismo (COMTUR) e o Fundo Municipal de Turismo (FUMTUR) não atenderam às normas nos últimos três anos. Esses foram os fatores que deixaram o município sem o recurso do repasse.
No último ano, Mariana não foi contemplada pelo ICMS Turismo por não ter sua documentação aprovada pelo FUMTUR. De acordo com o Secretário do Patrimônio Histórico, Cultura, Turismo e Lazer de Mariana, Gustavo Leite, a desclassificação foi dada por um erro no uso do recurso destinado ao fundo do setor. Gustavo, que assumiu a pasta há nove meses, justificou que a atual gestão recebeu o orçamento pronto para esse ano e que há carência de recursos no município. De acordo com o secretário, a gestão pretende retornar ao ranking do ICMS do setor para compor recursos para o Plano Municipal de Turismo.
Flora D'El Rei Lopes Passos é professora do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Ouro Preto e comenta que o turismo é uma das potenciais formas de diversificação econômica para Mariana, que tem parte significativa de sua receita composta por empresas envolvidas com a mineração. Entre janeiro e agosto de 2024 a cidade teve uma receita de aproximadamente R$86 bilhões de reais, e empresas como Samarco S/A, Fundação Renova, Vale e Cedro Mineração foram responsáveis, só estas, diretamente pela parcela de R$56 bilhões, o que corresponde a cerca de 65% do faturamento total do município no período.
Apesar de enriquecer o Produto Interno Bruto (PIB) municipal, a atividade minerária impacta negativamente os aspectos social e ambiental da cidade, haja vista a tragédia-crime de rompimento da Barragem de Fundão em 2015 e que, até hoje, ainda não foi solucionada. “A relação de dependência com a mineração, sob um modelo predatório que ignora os impactos socioculturais, foi escancarada no rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, da Samarco/Vale/BHP, em 2015, mas segue com toda a força em Mariana”, comentou a professora Flora, que também é uma das conselheiras do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural (COMPAT).
Com o crime cometido pela Vale e Samarco foram despejados cerca de 50 milhões de toneladas de lama e resíduos tóxicos no Rio Doce e, ainda assim, a atividade minerária segue em expansão no município, impactando diariamente a comunidade. Nesta edição, o jornal Lampião relatou em matérias como: ‘A Rodovia dos minérios é uma alternativa para a “Rodovia da morte”?’ e Fé e mineração no distrito de Antônio Pereira alguns impactos recentes que a atividade econômica exerce no município.
Além da dependência econômica da cidade, a atividade minerária é conflituosa com o desenvolvimento turístico. O secretário Gustavo Leite comenta o volume de pessoas que vêm à cidade em busca de trabalho nestas empresas e que acaba por inibir a atividade turística. “Hoje nós temos aqui a rede hoteleira cheia destes funcionários, o que para o turista atrapalha. Você não acha uma vaga em hotel. A maioria dos hoteis aqui tem uma característica mais simples, justamente, por às vezes, trabalhar como alojamento”, destacou Leite.
Apesar de reconhecer esses conflitos, Gustavo Leite que, na atual gestão municipal, ocupa o cargo de Secretário Municipal e, também, presidente do COMPAT, que acaba de aprovar o projeto de expansão das atividades da Samarco. O “Projeto Longo Prazo" prevê a construção de pilhas de rejeitos em distritos como Camargos e Bento Rodrigues, afetando também o turismo da cidade de forma direta. Mesmo com o projeto que é de Longo prazo para alguns imediato para outros, Gustavo acredita ser possível construir um cenário favorável para o turismo na cidade de Mariana em cinco anos.
No entanto, ele reconhece também que a atividade minerária “atrapalha um pouco de tão intensa”, justificando que “tanto essa atividade econômica [mineração], quanto a valorização de toda a cultura e do patrimônio que existe em Mariana, tem que ser concomitante”. Porém, quando questionado sobre a necessidade de transformação, o gestor comenta: “É necessário que haja essa mudança porque a mineração ajuda num ponto, mas acaba atrapalhando muito”.
Além de se tornar a cidade do estado que mais vai obter o repasse do ICMS critério Patrimônio Cultural e Turismo, o primeiro lugar no ranking, revela a gestão realizada naquele ano referente. A mudança para uma diversidade econômica em Mariana, que é dita como necessária por Gustavo, pode colocar a cidade em destaque nos critérios, agregando recursos para o Fundo Municipal. Esse papel de diversificar a economia e, consequentemente, receber os recursos do ICMS dessa atuação têm como foco a gestão de sua pasta.
A integrante do COMPAT, Flora, fala sobre o cenário atual: “De fato, não vemos investimentos e incentivos reais por parte do Poder Público, Executivo e Legislativo, na diversificação da economia”. Com o contraste entre o ICMS dos setores da Secretaria de Cultura, Patrimônio Histórico, Turismo e Lazer, é importante que ela articule sua gestão interna desenvolvendo o Turismo e Lazer a partir do potencial presente no patrimônio. Além disso, a pasta deve atender à execução em conformidade com o IEPHA do COMTUR e FUMTUR — órgãos definidos por lei — que deixaram a secretaria sem o repasse do ICMS Turismo nos últimos anos. Assim como o COMPAT, que é presidido por Gustavo, tem o compromisso de se orientar a partir de uma circulação de renda diversificada na cidade, considerando os impactos da mineração no setor e na comunidade marianense.
Na pílula abaixo, você confere os pontos principais da reportagem:
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