Na sinuosa ladeira da Santa Efigênia, entre telhados que guardam séculos de história do bairro Antônio Dias, ergue-se o Casarão do Vira Saia, uma das tantas construções que veem o tempo passar em Ouro Preto. Mas o que o tempo deixa à deriva, abandonado, a memória insiste em resgatar.
Durante o 11º Encontro Brasileiro das Cidades Históricas, Turísticas e Patrimônio Mundial, bem longe dali, sob os ares da cidade de Salvador, na Bahia, o prefeito de Ouro Preto, Angelo Oswaldo, assinou um termo de convênio com a Organização das Cidades Brasileiras Patrimônio Mundial (OCBPM). Foi garantido então 1,3 milhão de reais para trazer vida ao Casarão e manter a história que teima em permanecer viva, mesmo escondida entre escombros.
Uma vitória para o bairro mais charmoso de Ouro Preto, é o que dizem. Mas o caminho até aqui não foi breve. A trajetória em direção à restauração do Casarão é um reflexo do que significa preservar a história em meio ao presente. Em 2021, começou a delicada análise jurídica para a aquisição do imóvel pela prefeitura, culminando em sua desapropriação em 2022. Não foi apenas uma questão de burocracia: foi um ato de resistência. E como não? O Vira Saia, nome imponente e cheio de sussurros do passado, é muito mais que um casarão abandonado. É a história de um Robin Hood de Vila Rica, de um povo que não esquece suas lendas e lutas. Preservar é também proteger o que o futuro poderia perder.
Mas, afinal, quem foi o tal do “Vira Sahia”, como era conhecido o personagem no século XVIII, que empresta o nome ao Casarão? Dizem que por volta dos anos 1740, ali viveu um homem de modos irreverentes, rico e querido pela comunidade, mas que escondia um segredo. À noite, ele e sua quadrilha roubavam o ouro da Coroa, aterrorizando a população local com supostas aparições fantasmagóricas. Mas era tudo teatro para enganar os soldados. As “Almas do Purgatório”, como se chamavam, esperavam a noite cair para fazer a distribuição do ouro roubado, uma parte entre os membros da quadrilha e outra parte para um esconderijo secreto, até hoje não encontrado. Quando o Sol nascia, voltavam para suas famílias e trabalhos.
Naquela época, existiam dois caminhos para o ouro sair de Vila Rica para o Rio de Janeiro: um por Saramenha, passando por Ouro Branco, e outro pelas Cabeças, Passa Dez e Cachoeira do Campo. Antônio Francisco Alves, o Vira Sahia, mandou construir um oratório, em frente a sua casa, onde botou uma imagem de Nossa Senhora das Almas. Era com essa santinha que ele avisava os companheiros sobre qual seria o caminho do ouro, ora virava para o lado de Saramenha, ora para o lado do Passa Dez.
Mas como ele sabia o caminho que o ouro iria percorrer?
Esse era um problema sério para a Coroa, que até tentava enganar os ladrões mandando dois comboios, um disfarçado de comerciantes e outro escoltado por soldados. Porém, como dito anteriormente, Antônio era um homem de posses, estimado pela comunidade, fora de qualquer suspeita. Foi por isso que o Vira Sahia conseguiu a amizade de um homem que trabalhava na Casa de Fundição, seu informante. Na maioria das vezes, as Almas do Purgatório levavam a melhor.
As autoridades, indignadas com a situação, tinham certeza de que havia de ter um informante, única explicação para a situação. Eles botaram uma recompensa em ouro para quem entregasse os bandidos. Muitas foram as pessoas mortas por engano, tendo suas cabeças cortadas e expostas na saída de Ouro Preto. Hoje o local é conhecido como Alto das Cabeças.
Havia apenas um estrangeiro entre o bando. Um espanhol que odiava os portugueses e sonhava em voltar para a Espanha. Instigado pela recompensa e por sua mulher, ele procurou as autoridades e contou tudo. Que os bandidos se chamavam Almas do Purgatório e eram organizados por um “monstro vingativo, feiticeiro cruel, chamado Vira Sahia”. Foi o suficiente para a Coroa saber quem era, só existia um Vira Sahia, mas era um homem rico e estimado, eles não podiam prendê-lo sem ter certeza. A partir de então, homens à paisana começaram a vigiá-lo dia e noite. Os soldados perceberam que na frente do casarão havia um oratório com a imagem de Nossa Senhora das Almas, que era cuidado única e exclusivamente pelo Antônio, que ora estava virado para a direita, ora para a esquerda. Mataram a charada da informação. Uma noite confirmaram suas suspeitas e soldados cercaram a casa.
O que ocorreu depois disso não foi bonito. O homem foi espancado e morto na frente de sua família, sem um julgamento e sem revelar a localização do esconderijo do ouro. Sua esposa e filhas foram espancadas, estupradas e jogadas mortas em um matagal próximo, tendo seus corpos encontrados por cachorros dias depois.
A Capela das Dores só existe hoje porque o noivo de uma das filhas de Antônio, desolado após sua perda, entrou para o convento e tratou de construir o local. Sem torres, pois estas só existem em locais afortunados. Até tentaram construir torres naquela capela, mas misteriosamente elas caiam em menos de 15 dias após a conclusão.
O delator foi morto pelo bando, junto de sua esposa e filha. Dizem que sua alma, semelhante a um urubu, saiu do corpo e vaga até hoje, tentando encontrar o caminho para a Espanha. Se você observar, ainda consegue ver três urubus pousados na Casa dos Contos, observando o horizonte.
Sejam essas histórias, lendas ou não, o Vira Saia se eternizou no local e se olhar bem, você pode vê-lo em meio às ruínas de seu casarão. Na ladeira da Santa Efigênia, o Casarão Vira Saia aguarda. Resiste. Como todo bom casarão colonial, ele sabe que as histórias nunca acabam, apenas esperam o momento certo de recomeçar.
Este texto é uma crônica que combina elementos da história e da memória coletiva de Ouro Preto, construída a partir de pesquisa detalhada e entrevista realizada com a escritora, historiadora e contadora de histórias, Angela Xavier, especialista na história do Casarão.
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