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"Criar uma arte que nos trabalhe por dentro": Inês Peixoto retorna a Ouro Preto e fala sobre cinema, teatro e o lugar da mulher nas artes

  • Julia Zago e Juliana Siqueira
  • há 1 dia
  • 8 min de leitura

Atualizado: há 4 horas

Ouça o resumo da matéria:


 Fundo colorido, com algumas fotos antigas de Ouro Preto em preto e branco, onde no centro se encontra uma mulher.
Inês Peixoto, integrante do grupo Galpão, presente no segundo dia do debate Elas dirigem o riso. | Foto: Julia Zago.

Maria Inês de Castro Peixoto, mais conhecida como Inês Peixoto, é uma das vozes mais expressivas e multifacetadas do teatro brasileiro contemporâneo. Integrante do Grupo Galpão, referência nacional em artes cênicas, Inês também transita pelas áreas de direção, cinema, dramaturgia e roteiro. Natural de Belo Horizonte, a atriz construiu, ao longo de décadas, uma trajetória marcada pela busca constante de inovação, pela valorização do coletivo e pelo compromisso com narrativas que dialogam com a infância, o humor e as questões de gênero. Em meio à abertura da 20ª edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto (CineOP), que neste ano celebra a presença de mulheres no cinema brasileiro, Inês compartilha conosco memórias, reflexões e o olhar singular que molda sua atuação nas artes.


Você já esteve em Ouro Preto em diferentes momentos da sua carreira, como em 1992 com “Romeu e Julieta” e depois com “A Paixão segundo Ouro Preto”. Como foi voltar agora, participando da abertura da 20ª edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto, em outro papel e representando também o cinema?


Eu venho a Ouro Preto desde a adolescência, principalmente por causa do Festival de Inverno. Antes mesmo de 1992, já tinha me apresentado aqui em outras ocasiões, no teatro, na Casa da Ópera, participando de festivais. Mas 92 foi um marco: foi meu primeiro trabalho com o Galpão, com Romeu e Julieta, um espetáculo que entrou para a história do teatro brasileiro. Então Ouro Preto é um lugar que me atravessa muito: pela história, pela arte, pela cultura que pulsa aqui.


Já estive em outras edições do CineOP também. Lembro, por exemplo, de uma homenagem ao Eduardo Coutinho, com quem trabalhamos em Moscou [filme documentário brasileiro produzido em 2009] com o Grupo Galpão. Tenho muitas memórias afetivas ligadas a esse território.


E agora, voltar para a abertura da 20ª edição da mostra foi muito especial. Fui convidada pelo Chico de Paula, que dirige essas aberturas dos festivais, e fiquei muito tocada com o convite. A praça estava linda! E ele teve essa delicadeza de me chamar para uma edição que trouxe como eixo o humor das mulheres no cinema. Foi uma escolha sensível, importante, e me senti muito honrada de participar.


E a abertura foi emocionante, pelos homenageados, pela força dos temas. Fiquei especialmente feliz por apresentar a Marisa Orth, uma atriz maravilhosa, completa, com um humor inteligente, que atua com maestria no teatro, na TV, no cinema e na música. Foi um prazer imenso viver tudo isso e estar aqui celebrando a arte nesse festival tão necessário.


Como é o processo de fazer humor no teatro, no cinema e na televisão? Você acha que o universo do teatro oferece mais espaço para a invenção, não só no humor, mas também em outros gêneros?


O teatro tem uma generosidade com o ator que é muito particular. No cinema e na televisão, você faz uma cena, e aquela gravação vai passar por várias etapas: o olhar do diretor no set, a escolha dos takes, a montagem... e, no fim, o que chega ao público depende de muitos filtros. Se tudo se alinha [direção, montagem, atuação], o resultado pode ser incrível. Mas é uma entrega mais definitiva e controlada.


Já no teatro, o processo é outro. A gente começa com ensaio, estudo, preparação, mas o espetáculo de verdade só começa a se construir no contato com o público. É nesse encontro que a gente entende o tempo da piada, o ritmo da cena, os gestos que funcionam. E isso pode mudar a cada apresentação.


Você vai lapidando o trabalho ao longo da temporada. Descobre coisas novas, pequenos ajustes que fazem muita diferença. É um processo vivo, orgânico, que te permite crescer junto com o espetáculo. Isso vale para o humor, mas também para outros gêneros como drama, tragédia, o que for. O teatro te dá essa escuta direta da plateia, essa troca constante, e isso é muito rico.


Qual é o seu tipo de humor favorito?


Ah, o que me faz rir de verdade! [risos]. Aquele humor que arranca uma gargalhada, esse é o que me pega. E ele pode vir de várias formas: pode ser um humor político, pode ser algo clownesco [humor feito por palhaços], pode vir da ingenuidade mesmo. O importante é que ele tenha verdade, que me surpreenda de algum jeito.


Agora, o humor que só serve para ofender ou humilhar, esse não me interessa. Não acho graça em piada que desrespeita o outro, que reproduz preconceitos. Prefiro o humor leve, inteligente, aquele que consegue rir do mundo  — e de nós mesmos — com afeto e crítica ao mesmo tempo.


Você comentou sobre o seu primeiro trabalho no Grupo Galpão, o espetáculo Romeu e Julieta. Como foi o processo de entrada no grupo e qual a importância dessa experiência na sua trajetória artística?


Eu entrei para o Galpão por meio de um workshop. Na época, eu estava em Belo Horizonte, buscando uma reciclagem. Vivia um momento de crise mesmo. Trabalhava com companhias e produtores independentes, mas não tinha, até então, o desejo claro de integrar um grupo fixo.


O convite veio de forma muito orgânica. Um dos atores do Galpão, o Antônio Edson, sabia que eu tinha feito uma oficina com o Gabriel Vilela em São Paulo, e eles estavam justamente começando um projeto com o Gabriel. Me chamaram para participar do workshop e, daí, surgiu a oportunidade de integrar o elenco de Romeu e Julieta. Eles precisavam de mais uma atriz e me convidaram.


Aceitei na hora. E foi uma sorte enorme, porque o Galpão transformou minha vida, em muitos sentidos. É um coletivo muito especial, sempre em busca de novas experiências, novas linguagens e novos desafios. Embora o teatro seja o nosso foco, há uma escuta constante às individualidades dentro do grupo. Somos atores muito diferentes entre si, e talvez aí esteja a força do Galpão: essa diversidade, essa abertura.


A cada nova montagem, trabalhamos com diretores convidados, o que nos obriga a entrar em universos distintos. Isso foi fundamental para mim não só como atriz, mas como diretora, roteirista e dramaturga. O Galpão não é só uma companhia: é um percurso artístico e afetivo profundo, que me atravessa até hoje.


Como foi para você esse movimento de expandir sua atuação como atriz para áreas como roteiro, direção e dramaturgia?


Ah, eu acho maravilhoso! O teatro é uma artesania, e é muito rico poder transitar por todos os elementos dessa artesania. Quando você está envolvida em processos criativos que exigem do ator uma postura ativa e colaborativa, como acontece no Galpão, é natural que você vá colocando a mão em tudo: figurino, texto, encenação, planejamento...


Um grupo de teatro exige múltiplas competências. Tem a parte técnica, a parte administrativa, a artística, a logística. E nós, como coletivo, acabamos nos envolvendo em todas essas dimensões, o que amplia muito nossa visão e nossa escuta como artistas.


Além do trabalho no grupo, também tenho meus projetos pessoais. Escrevi Órfãos de Dinheiro, um monólogo em que atuo e que nasce de uma inquietação minha sobre a emancipação econômica das mulheres, um tema que me atravessa profundamente e que se manifesta por meio de personagens femininas potentes.


Às vezes dirijo, outras vezes escrevo. Ontem mesmo, na Mostra de Cinema de Ouro Preto, estreou O Silêncio de Eva, dirigido pela Elza [Inês se refere a Elza Cataldo, diretora, roteirista e produtora]. Foi um projeto que nasceu de uma ideia minha, e eu atuei também como roteirista, junto com a Elsa e a Christiane Tassis.


Minha principal atuação ainda é como atriz. É onde eu mais gosto de me ver, de me expressar, mas também amo escrever, dirigir, e sou apaixonada por cinema e audiovisual. Já tive a chance de participar de muitos trabalhos incríveis. No fim das contas, o que move tudo isso é o prazer de estar trabalhando, criando, ativa. É isso que a gente quer: estar em projetos legais, seja no teatro, no cinema ou na televisão.


Entre tantas produções no teatro, cinema, televisão e minisséries, há alguma obra ou personagem que tenha sido especialmente significativa para você?


Ah, com certeza. Existem trabalhos que marcam mais profundamente… Às vezes porque a gente se encontra mais neles, às vezes porque até o desencontro nos ensina. Quando um trabalho não flui como você gostaria, ele também te transforma. Te faz pensar, te move para o próximo com mais consciência.


Mas sim, tem obras muito significativas para mim. Na televisão, por exemplo,  Hoje é Dia de Maria, dirigido pelo Luiz Fernando Carvalho. Foram duas temporadas, e o processo foi lindíssimo, muito próximo do que vivemos no Galpão. Ele levou para a TV uma experimentação estética e de linguagem rara, e isso me marcou profundamente.


No cinema, tem o filme Duas Irenes, do Fábio Meira, que eu adoro. E também os projetos com a Elsa, a gente trabalha juntas há bastante tempo e temos uma afinidade criativa muito forte. Fizemos O Crime da Atriz, um curta de humor histórico maravilhoso; Órfãs da Rainha, O Silêncio de Eva, e agora temos outro filme em edição. Ela mergulha nas temáticas históricas de um jeito muito particular.


No teatro, é até difícil escolher, porque cada montagem no Galpão é um mergulho em uma linguagem nova. Romeu e Julieta foi um divisor de águas, não só para mim, mas para o teatro brasileiro. Já O Till é um espetáculo pelo qual tenho um carinho enorme. Nele, faço um menino na Idade Média que se recusa a nascer. Ele passa cinco anos dentro do útero da mãe. É uma espécie de “Macunaíma medieval”, como eu costumo brincar. A peça tem humor, mas também fala de temas muito profundos, como abandono e abuso de poder.


Temos também o Cabaré Coragem, que adoro fazer. E agora estreamos Ensaio Sobre a Cegueira, que é outro desafio enorme. Todos esses trabalhos me movimentam, me fazem crescer como pessoa e como artista. É isso que me interessa, estar em movimento, em criação.


Você, enquanto mulher, atriz, cineasta e roteirista, como vive seu papel dentro das produções e como contribui para fortalecer as narrativas de outras mulheres no audiovisual?


Acho que isso foi um processo. No começo, quando a gente escolhe beber de arte, precisa fazer um pouco de tudo. Pega um bico aqui, uma peça ali, um trabalho pontual... E isso também faz parte da formação. Mas chega um momento em que, com um pouco de sorte e trajetória, você começa a poder escolher o que quer dizer com o seu trabalho.


Hoje, para mim, o mais importante é estar conectada com aquilo que me atravessa de verdade. E muito disso tem a ver com o existir das mulheres no mundo. A presença feminina, os atravessamentos da vida real, os desejos, as dores e potências, são temas que me movem e que eu tento colocar nas obras em que me envolvo.


Tenho também uma ligação muito forte com a infância. Sempre que posso, me conecto com esse universo. O Till, por exemplo, foi um espetáculo muito importante para mim nesse sentido. Eu tenho uma criança muito viva dentro de mim, e procuro respeitar isso. A infância me seduz. Talvez porque ela traz uma verdade desarmada, que é muito próxima da arte.


Mas nem sempre estamos em projetos que dizem exatamente o que queremos naquele momento. E aí entra uma inteligência emocional e criativa: como me conectar com esse trabalho, mesmo que ele pareça distante? Como fazer dele algo que também fale de mim? Acho que esse é o desafio: criar uma arte que também nos trabalhe por dentro. Que seja verdadeira para quem faz, tanto quanto para quem recebe.


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