Comunidades locais celebram o reconhecimento estadual das tradições afro-brasileiras, mas enfrentam desafios na busca por apoio concreto e valorização efetiva
Os Congados e Reinados foram reconhecidos como Patrimônio Cultural Imaterial de Minas Gerais pelo Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep), em 3 de agosto de 2024, durante reunião do órgão no Palácio da Liberdade, Belo Horizonte. Esse reconhecimento foi celebrado no festival “Cozinha das Afromineiridades Congados e Reinados”, realizado na capital mineira. Em Mariana, onde os Congados e Reinados existem desde 1940, as comunidades ainda enfrentam desafios contínuos por falta de apoio e recursos, revelando um descompasso entre o reconhecimento cultural e as dificuldades práticas do cotidiano.
O Festival tem como objetivo valorizar as manifestações culturais tradicionais, e contou com um cortejo que reuniu mais de 30 grupos de Congados e Reinados de diversas regiões do estado. Cerca de 1.500 congadeiros e reinadeiros saíram do Palácio das Artes em direção ao Palácio da Liberdade. Durante o cortejo, foi erguida a bandeira de Nossa Senhora do Rosário, acompanhada pela bandeira de ferro fundido de Ouro Preto, destacando a celebração das raízes afro mineiras.
O evento também marcou o anúncio de dois editais voltados para as culturas tradicionais e populares de Minas Gerais, incluindo o Prêmio Rainha Conga e o Prêmio Afromineiridades, totalizando R$4 milhões em recursos destinados à preservação e valorização dessas expressões culturais. Esse reconhecimento é o resultado do trabalho de catalogação, por meio de inscrições dos Congados e Reinados no site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), conduzido desde 2021, que resultou no dossiê “Caminhos, Expressões e Celebrações do Rosário em Minas Gerais”, sobre a importância histórica, cultural e social dessas expressões afro-brasileiras.
De acordo com o parecer técnico do dossiê, este é um marco de grande importância no processo de reparação de “apagamentos e invisibilidades no combate ao racismo e à intolerância religiosa. Possibilitando a implementação de políticas públicas direcionadas para a preservação, a promoção e a salvaguarda de ancestralidades e da memória negra no estado de Minas Gerais.”
Um complexo cultural e religioso enraizado nas tradições afro-brasileiras
Segundo pesquisa do Observatório do Patrimônio Cultural do Sudeste, o Congado originou-se no século XVIII, sendo uma manifestação baseada em sincretismo que une cultos africanos e católicos. Os Congados e Reinados são festas em louvor a santos como Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. As festividades são caracterizadas pela sonoridade dos tambores e a performance de grupos de dança, que seguem um cortejo liderado por capitães e, frequentemente, em procissão com reis e rainhas negros.
Segundo o dossiê apresentado pelo Iepha-MG, o processo de patrimonialização busca garantir a transmissão intergeracional dos saberes, ou seja, formar jovens das comunidades para dar continuidade às tradições. Outro ponto central é o acesso facilitado aos recursos públicos, como os provenientes do ICMS Cultural e editais estaduais, como o Prêmio Rainha Conga. Esses recursos são fundamentais para que as comunidades possam adquirir instrumentos, vestimentas e organizar os eventos anuais.
O dossiê produzido pelo Iepha destaca que o Congado e o Reinado são tradições que conectam a comunidade aos seus ancestrais, expressando uma visão de mundo enraizada na cosmologia centro-africana. O Observatório do Patrimônio Cultural do Sudeste destaca que isso fortalece a relevância do reconhecimento dessas manifestações como patrimônio imaterial, pois abrangem não apenas os aspectos visíveis da tradição, como os cortejos e a música, mas também a profundidade espiritual e simbólica.
O historiador formado pela Universidade Federal de Ouro Preto, Vittor Policarpo, afirma que o Congado vai além de ser uma manifestação cultural. “O Congado é um símbolo de luta, resistência e resiliência das comunidades negras que, historicamente, foram marginalizadas na cidade. Suas raízes remontam ao período colonial, quando as irmandades de pessoas negras, como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, desempenhavam papéis cruciais no fortalecimento dos laços comunitários e na preservação de tradições africanas em um contexto de escravidão e forte repressão”, detalha.
Patrimonialização, necessidade de reconhecimento e contexto histórico local
O Congado já possui reconhecimento nacional como patrimônio imaterial, conforme registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Entretanto, o reconhecimento estadual se propõe a reforçar o compromisso local com a valorização dessas manifestações e a necessidade de apoio contínuo para garantir sua preservação e relevância cultural. O dossiê traz que o Governo de Minas tem como função proteger e promover o Congado e o Reinado, por serem práticas que estão presentes no estado desde o século XVIII e são fundamentais para a identidade cultural.
O documento também ressalta a importância de ações educativas para conscientizar a população sobre o valor histórico e cultural das tradições afro-brasileiras. O objetivo é implementar políticas públicas que levem essas práticas para o currículo escolar e outros espaços educativos, promovendo a valorização contínua do Congado e Reinado como elementos fundamentais da identidade afro-mineira. A ideia é que o reconhecimento cultural não seja apenas simbólico, mas também traga ações concretas de preservação, como a realização de seminários, oficinas e outras atividades que envolvam a comunidade na gestão participativa dos patrimônios.
O processo de patrimonialização, que consta no dossiê, resulta na implementação de ações para garantir a preservação e continuidade dessas culturas. Isso é explicado na quarta parte do dossiê, onde há um projeto de proteção e garantia do patrimônio. Este destaca a importância histórica e social dos Congados e Reinados e define estratégias para sua salvaguarda, como a continuidade da tradição, gestão participativa e promoção.
O membro do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (COMPAT), Lélio Pedrosa Mendes, afirma que o reconhecimento do Congado e Reinado como Patrimônio Imaterial em Minas Gerais é de suma importância. “Com o Congado sendo registrado, eles [congadeiros] podem pedir recursos ao ICMS cultural oficialmente”, explica.
O ICMS Patrimônio Cultural é um programa de incentivo à manutenção e valorização do patrimônio em Minas Gerais e funciona a partir do repasse de recursos aos municípios que adotam políticas públicas eficazes para a preservação de seu patrimônio cultural.
O autor da monografia "Os batuques do silêncio: patrimônio e educação quilombola no município de Mariana (Minas Gerais): uma análise transecular”, Vittor Policarpo acredita que a patrimonialização pode impactar a relação entre o congado e as demais manifestações culturais e religiosas da cidade, promovendo valorização e preservação.
Entretanto, o historiador alerta para as consequências de uma excessiva comercialização das tradições. “Na minha opinião, há também o risco de que a patrimonialização transforme o congado em um produto cultural voltado mais para o consumo turístico do que para sua função comunitária, cultural e religiosa de aquilombamento, distanciando a prática da tradição”, conclui. Por outro lado, Lélio Pedrosa Mendes, conselheiro do COMPAT, afirma que essas manifestações culturais sempre foram atrativos turísticos na cidade de Mariana, uma vez que, é na Festa da Bandeira do Divino Espírito Santo que acontece o encontro anual de congados, vindos de cidades próximas e mais distantes da Primaz de Minas.
O congado em Mariana: falta de registro e investimento
Como informa o terceiro episódio da websérie "Memórias da música negra em Mariana - Memórias da Barroca”, produzido por Pollyanna Assis, a história do Congado na cidade começa na década de 1940, com a chegada de Paula da Cruz à Fazenda do Jequitibá, localizada no distrito de Barroca. Paula da Cruz já era Rainha do Congado na cidade de Piranga desde 1904 e trouxe consigo, além de sua experiência, seus 11 filhos, todos participantes do Congado de Piranga. Dois anos após sua chegada, em 1942, Paula da Cruz deu início à formação do Congado de Barroca.
Apesar dessa tradição, a luta para preservar o Congado em Mariana ainda enfrenta diversos desafios. De acordo com o Observatório do Patrimônio Cultural do Sudeste, não há registro oficial de toques de Congados e de Reinados na cidade, o que sugere a falta de reconhecimento e apoio formal a essas tradições.
A Guarda de Congo Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião, uma das mais conhecidas na região, foi fundada em 8 de dezembro de 2014. Sua criação foi marcada por um forte simbolismo e espiritualidade. Segundo Marcelo Ramos, Primeiro Capitão da Guarda, “Eu só estava sonhando com um congado dançando com as duas bandeiras. Aí, eu perguntei a um guia da minha mãe, Pai Miguel, o significado desse sonho. Ele falou comigo que isso é uma missão que eu havia recebido de Nossa Senhora do Rosário. Eu tinha perguntado para ele quanto tempo eu tinha para criar um congado. O guia me disse que ‘era pra ontem’, que eu já tinha que começar. Os primeiros instrumentos da gente foram latas de Nescau com milho dentro, fazendo um ‘xique-xique’, nossa primeira roupa foi doada pela escola de samba Acadêmicos do Barro Preto, da qual eu faço parte. Foi assim que a gente começou.”
Embora o Congado e o Reinado tenham sido registrados recentemente como Patrimônio Imaterial do estado de Minas Gerais, o impacto desse reconhecimento é debatido entre os congadeiros de Mariana. Para Maria Marta, presidente da Guarda de Congo de Nossa Senhora do Rosário e São Sebastião, o reconhecimento oficial ainda não trouxe mudanças: "Não tem diferença nenhuma, seja patrimônio ou não seja patrimônio”.
Por outro lado, Lélio Pedrosa, acredita que o reconhecimento pode trazer benefícios futuros, como maior facilidade na captação de recursos estaduais e federais para a preservação dessas tradições.
Contudo, para muitos, o apoio municipal ainda é insuficiente. "O governo está preocupado em trazer de fora ao invés de valorizar o de dentro", acredita Marcelo Ramos. A congadeira Renata Carneiro reforça o sentimento de desamparo: "Nós somos marianenses e pertencemos a uma cultura que não é de hoje, é de sempre. Então, o descaso é muito grande sim”.
A Segunda Capitã da Guarda, Vanda Maria, critica os órgãos públicos pela falta de atitudes em relação ao congado e sua manutenção. “Posso dizer que há 15 anos sou congadeira e nunca ajudaram. O que dão são migalhas, e às vezes nem isso.”
De acordo com Marcelo, falta instrução e auxílio da Municipal de Cultura, Patrimônio Histórico, Turismo e Lazer da cidade. “Eu acho que falta um pouco da boa vontade, porque nós fomos, eu e o Arthur [terceiro Capitão da Guarda] em uma reunião da Secretaria de Cultura e eles queriam que a gente fizesse uma coisa sem dar pra gente o apoio. Não tem como. Como que a gente manda um projeto sem saber como funcionaria? Então é onde eu vejo esse certo descaso”, pontua.
Entramos em contato com a Secretaria Municipal de Cultura, Patrimônio Histórico, Turismo e Lazer de Mariana e com o Conep, porém, até o fechamento desta matéria, não houve retorno das instituições.
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