De Fundão à Doutor, a lama assombra Antônio Pereira
- João Pedro Nepomuceno, Laira Ferreira e Luiz Carlos Diniz
- 8 de nov.
- 6 min de leitura
47º edição
O distrito de Ouro Preto foi reconhecido como atingido por Fundão apenas no ano passado, nove anos depois do desastre-crime, e os moradores da região ainda lutam por uma reparação dos danos causados pela ação mineradora.

Após o rompimento da barragem de Fundão, o silêncio deixado pela lama ainda ecoa em Antônio Pereira, um distrito a cerca de 15 km de Bento Rodrigues. A lembrança do crime ambiental marca a memória dos moradores. Casas vazias e crianças brincando debaixo de placas de rota de fuga, além de barulho intenso causado pelos caminhões que cruzam as ruas do distrito, colaboram para a sensação de esquecimento vivida, dia após dia, por uma comunidade que há uma década tenta ser ouvida.
Embora o rejeito de Fundão não tenha atingido diretamente o distrito, a tragédia ceifou a vida de dois moradores da região: Cláudio Fiuza, de 40 anos, e Mateus Márcio Fernandes, de 29. Cláudio sofreu um mal súbito após correr para fugir da lama, enquanto Mateus, arrastado pelos rejeitos, teve o corpo encontrado só três dias depois do rompimento. No dia do crime ambiental, Cláudio e seu amigo Douglas Garcia, também morador de Antônio Pereira, estavam trabalhando próximo à barragem de Fundão. Douglas conseguiu fugir do mar de lama, mas os danos físicos, psicológicos e econômicos são carregados até hoje.
Duplamente atingidos
Em Antônio Pereira, além das perdas humanas, econômicas e simbólicas causadas pelo rompimento de Fundão, outro fator da mineração que reforça a vulnerabilidade dos moradores é a proximidade com a barragem Doutor, da Vale. A estrutura armazena cerca de 35 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério de ferro e se estende por aproximadamente 1,98 km² do território de Antônio Pereira. Ao redor da comunidade, forma-se a chamada Zona de Autossalvamento (ZAS), área considerada de risco por estar a 30 minutos ou 10 km da chegada da lama em caso de rompimento da barragem.
Assim como a barragem de Fundão, Doutor é do tipo a montante. “Em maio de 2019, houve um movimento da comunidade que já trabalhou na barragem, de mostrar à justiça que a barragem não era pelo método linha de centro, e sim pelo método a montante. Por isso, nos documentos consta o método construtivo a montante, misto e desconhecido, que é como eles reconhecem a barragem”, explica a engenheira ambiental Fabrícia Tavares, do Instituto Guaicuy.
Após desastres como o de Brumadinho, o Governo de Minas Gerais sancionou, em 2019, a Lei “Mar de Lama Nunca Mais”, que proibiu a construção de novas barragens deste tipo e determinou a descaracterização das existentes. Posteriormente, a Lei Nacional nº 14.066/2020 reforçou a proibição de estruturas a montante em todo o país, alterando a Política Nacional de Segurança de Barragens. Para se adequar às novas leis, a Vale começou, ainda em 2020, a descaracterização de Doutor e, com ela, novos problemas surgiram.
A fim de viabilizar a chegada ao local das obras e a construção do extravasor, uma passagem para o excesso de água, foi construída uma estrada alternativa pela mineradora. Como consequência, houve o aumento de barulho, riscos de desabamento de pedras e problemas estruturais nas casas que não foram projetadas para suportar este tipo de perturbação no solo. Também é registrada a incidência de grande quantidade de poeira e minério que se desprendem dos veículos e da própria estrada de terra feita pela mineradora, o que provoca crises de rinite, sinusite, asma e bronquite nos moradores.

“Hoje é praticamente 24 horas de poeira, aquela poeira preta que impregna” - Aliliane Verissimo
Aliliane Verissimo, 44, moradora na região da Pedreira, em Antônio Pereira, conta que a poeira se tornou um grande transtorno. “Eu brinco até com o pessoal assim: ‘hoje a gente não tem poeira em Antônio Pereira, hoje a gente tem minério’. O que a gente respira aqui é minério… Hoje é praticamente 24 horas de poeira, aquela poeira preta que impregna”. Além disso, a moradora ressalta que a Vale não cumpre com seus compromissos para diminuir a poluição do ar, como o envio de caminhões-pipa, que deveriam passar diariamente, para molhar a estrada.
O problema da poeira é agravado durante a seca e se transforma durante os períodos de chuva. Aliliane conta que desde a criação da estrada, a água da chuva se junta com a terra e a poeira, e se transforma em lama que chega a invadir o seu terreno e até mesmo sua casa. “Antes descia água da chuva e uma água de mina que tem lá… descia água clara, descia e passava reto. Eles suspenderam a estrada e hoje desce é lama.”
As mudanças na qualidade de vida causadas pela mineradora também são uma realidade no distrito. “As crianças hoje não têm lazer aqui dentro de Antônio Pereira. Antes, a gente ia pra cachoeira sozinho. Hoje, a gente não tem coragem de deixar. Hoje, ali tem uma placa dizendo: não pode passar, não pode andar, não pode pescar. E as cachoeiras estão lá em cima. Fora isso, devido aos caminhões, a gente sente barulho, pedras caindo da pedreira e também os tremores", ressalta Aliliane.

Para Aisllan de Assis, professor de Saúde Coletiva da Escola de Medicina da Universidade Federal de Ouro Preto, a exposição aos resíduos oriundos da mineração gera nos moradores o medo de que a própria pessoa ou algum familiar possa vir a adoecer. Segundo ele, isso provoca uma sobrecarga emocional e mental nos habitantes do distrito, que se soma ao medo constante perante o risco de rompimento da barragem. “É como se fosse um grande monumento que diz para a comunidade o tempo todo que aquele espaço ali é um espaço arriscado, é um espaço dominado” , afirma o professor. Em um estudo realizado em 2022 por uma equipe multiprofissional da Unidade Básica de Saúde do distrito, de 172 pessoas entrevistadas, 109 (63%) apontaram medo, pânico ou preocupação em relação à barragem Doutor.
As casas esvaziadas na Zona de Autossalvamento, resultado do deslocamento compulsório de centenas de moradores do distrito, também se tornaram um risco. Com a falta da devida manutenção, estruturas estão danificadas, paredes pichadas e o acúmulo de entulhos em seus terrenos propicia a criação de focos de dengue e outras arboviroses, como zika e chikungunya. Durante os primeiros meses de 2024, segundo dados do Departamento de Vigilância de Zoonoses de Ouro Preto, dos 167 casos positivos registrados de dengue no município, 140 foram em Antônio Pereira, representando 87,2% dos casos totais.
Segundo dados do Painel de Barragens de Mineração da Agência Nacional de Mineração, atualmente a barragem Doutor se encontra com a classificação de “Alerta”, após saída do “Nível 1” em setembro de 2025, o que indica baixo risco de rompimento. A conclusão dos trabalhos de descaracterização da barragem Doutor, pela mineradora Vale, está prevista para novembro de 2029. Entre as medidas previstas pela empresa para reparar os danos causados pela estrada construída próxima à casa de Aliliane, está a reposição de vegetação nativa. Segundo o Manual de Reflorestamento e Revegetação do Governo Federal, esse processo leva de 50 a 100 anos para atingir o ponto de maturação florestal, isto é, o estágio em que a área reflorestada alcança equilíbrio ecológico e estabilidade.
Das casas evacuadas dos moradores na Zona de Autossalvamento, algumas foram destruídas e outras estão sob posse da Vale. | Foto: João Pedro Nepomuceno
SUPORTE FUNDAMENTAL - Atualmente, a comunidade de Antônio Pereira conta com a Assessoria Técnica Independente (ATI) como aliada à sua luta pela reivindicação de direitos. Por meio de eleição popular, o Instituto Guaicuy foi escolhido em fevereiro de 2021 para desempenhar o papel de acolher e mobilizar os moradores locais na luta pela reparação integral. A Assessoria começou a atuar apenas em dezembro de 2022, demora causada pela falta de liberação dos recursos, por parte da Vale, para o início dos trabalhos. Sobre o rompimento de Fundão, até hoje os moradores do distrito não contam com uma ATI para assessorá-los, reflexo da demora do reconhecimento de Antônio Pereira como comunidade atingida.















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