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Comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo temem desapropriação

  • Júlia Aguiar, Letícia de Lelis, Luiza Fernandes e Maria Eduarda de Lima
  • 6 de nov.
  • 9 min de leitura

47º edição


Dez anos após o maior desastre socioambiental do Brasil,  a medida ameaça o direito das pessoas atingidas sobre os seus territórios.


#ParaTodosVerem: Casa em ruínas com paredes desgastadas e manchadas pelos rejeitos. Há vegetações crescendo ao redor da construção
Ruínas em Paracatu de Baixo, com marcas do crime e do tempo em suas paredes | Foto: Letícia de Lelis

Desde a homologação do Novo Acordo de Repactuação da Bacia do Rio Doce, em 6 de novembro de 2024, o futuro das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, dois dos subdistritos mais destruídos pelos rejeitos do rompimento da barragem da Vale e BHP (Samarco) no desastre-crime de 2015, se mostrou incerto mais uma vez. O Anexo 1 - Mariana e Reassentamentos, impõe, para ambos os subdistritos, o tombamento municipal, a desapropriação e a construção de um memorial. O tombamento é uma proteção institucional para proteger bens de valor cultural e patrimonial. A desapropriação é a transferência de um bem particular para o setor público por interesse social, necessidade ou utilidade pública, e inclui uma indenização em dinheiro ao antigo proprietário.


Ana Paula Ferreira, arquiteta que atua na equipe de Assessoria Técnica Independente da Cáritas, em Mariana, diz nunca ter visto um caso no país em que o tombamento fosse vinculado à desapropriação. No acordo, homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a desapropriação é justificada pela “impossibilidade de utilização da área por seus proprietários, e para assegurar a preservação da história e memória do local”, como prevê a Cláusula 47 do Anexo 1. Ana Paula completa que o vínculo entre o tombamento e a desapropriação é desnecessário e foi tratado de maneira rasa e perversa. “Por exemplo, nos conjuntos tombados, como Ouro Preto, ninguém é impedido de andar no centro, então não é sempre que é desapropriado”, compara a arquiteta. “É mais uma violação em um contexto muito particular. As pessoas já sofrem uma violência enorme, já foram desterritorializadas, compulsoriamente expulsas, e ainda vão perder a propriedade, que é um território que tem valor afetivo para eles”.


De acordo com Ana Paula, a comunidade e as pessoas físicas não podem negar a desapropriação, que será feita compulsoriamente em caso de recusa, já que é um instrumento jurídico previsto na Constituição Federal. A Repactuação prevê um bônus de 50% do valor indenizado caso os proprietários aceitem a primeira oferta da Prefeitura de Mariana, órgão que, segundo o acordo, se torna responsável pela desapropriação e pelo tombamento das áreas atingidas. 


A Repactuação prevê o prazo de junho de 2025 para a oficialização do decreto municipal que dá início ao processo de tombamento e desapropriação. Até a publicação desta matéria, a medida segue sem homologação pela prefeitura. Em uma escuta pública, que aconteceu no Centro de Convenções de Mariana, no dia 2 de setembro, para tratar dos próximos passos dos memoriais, o prefeito Juliano Duarte destacou que o processo, à princípio, está suspenso temporariamente, até que as mineradoras apresentem um novo mapa da área de risco. Ele reforçou que as empresas, como causadoras do rompimento, deveriam ser responsáveis pela manutenção dos memoriais.


Segundo o relatório da Cáritas de entrega dos reassentamentos, a não-permuta, direito que garante às famílias uma nova moradia sem que precisem abrir mão da propriedade dos territórios de origem, foi conquistada em audiência judicial em outubro de 2017. A Comissão dos atingidos e atingidas pela Barragem de Fundão (CABF), em Carta Denúncia publicada em 2020, afirma que esse direito está sendo violado no processo de reparação.


A comunidade de Bento Rodrigues persiste


#ParaTodosVerem: Casa destruída, com duas faixas brancas com escrito em preto e vermelho, fixadas como protesto. Na faixa da esquerda está escrito “Protegidas por governos e justiças, mineradoras, matam, desmatam e nada acontece” e na da direita “Se você rejeita os rejeitos, nós também rejeitamos. Tire essa merda daqui!!!”.
Faixas colocadas por pessoas atingidas em Bento Rodrigues cobram respeito aos direitos das famílias e criticam a atuação das mineradoras | Foto: Maria Eduarda de Lima

“A minha relação é de uma vida, né? Nascida, criada e ficando aqui [em Bento origem] a vida inteira, sem pretender sair mais. É uma relação de pertencimento”, conta Maria das Graças Quintão, 68. Mesmo tendo se mudado para o reassentamento Novo Bento Rodrigues neste ano, ela continua voltando ao território origem com sua família. Lá ficam onde sua irmã, Terezinha, morava. Graças à localização mais alta, a casa não foi inteiramente destruída pela lama.


#paratodosverem: Senhora branca, de cabelos brancos presos, usando óculos de grau e blusa vermelha com estampa branca. Ela está sentada, com uma expressão séria e sem olhar diretamente para a câmera.
Maria das Graças, do grupo Loucos pelo Bento, é conhecida pelas comidas saborosas que cozinha nas celebrações religiosas em Bento (origem) | Foto: Maria Eduarda de Lima

Foi dessa vontade de permanecer que nasceu o movimento Loucos pelo Bento, criado por antigos moradores como uma forma de resistência e preservação da memória. “A gente vinha para cá, às vezes passava dentro do rio com a metade da perna com lama e todo mundo falava que a gente era doido, e ficou esse nome”, lembra Maria das Graças sobre a formação do grupo.


“Aqui nós temos paz”, completa.


Simária Quintão, 52, explica que a impossibilidade de retorno ao território de origem também está relacionado ao potencial minerário da região. “Em Paracatu eles podem voltar a morar porque lá não tem minério, aqui tem. Se lá tivesse eles não podiam entrar também. Aqui tem riqueza embaixo da terra”, afirma.


#paratodosverem: Porta marrom, na parte de dentro de uma casa, com uma frase escrita à mão: “Estamos vivos, estamos juntos, estamos fortes, somos muitos e somos loucos. Loucos por Bento Rodrigues”.
Porta da entrada do quarto da casa de Terezinha, em Bento (origem) | Foto: Maria Eduarda de Lima

As famílias temem que, com a desapropriação, venha também o apagamento da história de Bento Rodrigues. A Igreja de Nossa Senhora das Mercês, localizada no subdistrito, foi tombada como patrimônio cultural de Minas Gerais em setembro de 2018, e há também a possibilidade de tombamento de todo o território. Ainda assim, o sentimento é de incerteza. “Depois que vi a notícia do destombamento da Serra da Piedade, tombada mundialmente, perdi a fé nisso. Se lá querem destombar, imagina aqui”, diz Simária sobre um projeto encontrado pela Polícia Federal e pela Controladoria-Geral da União, em outubro deste ano, durante a “Operação Rejeito”. O projeto tentava reverter a proteção do local, na região de Caeté, para permitir a mineração.


#paratodosverem: Mulher branca, de cabelos loiros presos, usando uma regata preta. Ela está em pé na frente de uma casa em reconstrução, olhando diretamente para a câmera com uma expressão séria.
Simária, na entrada da casa de sua irmã, Terezinha, em Bento Rodrigues, onde os Loucos pelo Bento se encontram e passam quase todos os fins de semana. Durante a semana ela vive no reassentamento | Foto: Maria Eduarda de Lima

Muitas famílias já se mudaram para o reassentamento, mas ainda se sentem deslocadas. Maria do Carmo, 74, ainda tenta se acostumar com a nova rotina. “Lá, minha casa era grande, espaçosa, eu podia plantar o que quisesse. Aqui, tudo é pequeno, nada foi feito do jeito que a gente queria”, conta. “Pra plantar tem que descer lá embaixo e eu já não aguento mais fazer isso”. 


#ParaTodosVerem: Senhora, de cabelos grisalhos presos, usando blusa vermelha com estampa amarela, saia cinza e chinelo. Ela está em pé e apoiada em uma escada de alumínio. Ao fundo, janelas da parte interior da casa e plantas.
Maria do Carmo, em sua casa no reassentamento, onde cultiva flores como fazia em Bento | Foto: Maria Eduarda de Lima

O reassentamento de Bento Rodrigues segue o padrão de um bairro planejado, com ruas largas e casas padronizadas, mas a organização urbana não substitui o sentido de comunidade que existia no antigo subdistrito. “A gente ficava sentado na beira da rua batendo papo, hoje a gente não tem isso. Aqui é tudo fechado, a gente não vê mais ninguém”, lamenta Neires Clara, 63. Ela reclama, também, da quantidade de escadas e morros no reassentamento. Em Bento origem, o espaço era mais plano. Essa diferença de terreno e convivência pesa especialmente para os mais velhos. Maria Marques, 67, conta sobre a dificuldade de adaptação. “A casa não é igual era, é cheia de escada, e a idade da gente vai chegando, né? Eu tenho problema de saúde, e ficou muito difícil”.


Segundo depoimentos tomados pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, publicados em Ação Civil Pública de dezembro de 2015,  moradores afirmam que não houve nenhum tipo de aviso da Samarco quando o rompimento aconteceu. Nenhuma sirene ou alerta sonoro foi emitido. Além disso, também não sabiam o procedimento em caso de colapso da barragem porque nunca haviam feito um treinamento para esse tipo de situação. Simária conta que no dia 5 de novembro saiu cedo de casa e ficou sabendo do rompimento por uma ligação da sobrinha. Maria das Graças estava trabalhando quando o desastre-crime aconteceu e não conseguiu levar nada. “Sobrou nada da minha casa”. Maria do Carmo lembra que só pensou em sair de casa logo. “Nem chinelo, sai até descalça. Lembrei nem de celular”. Maria Marques estava em casa e saiu às pressas depois de saber pelo genro do problema na barragem. Neires viu a lama chegando e correu com o neto no colo. Os rejeitos da mineração atingiram o subdistrito em poucos minutos. 


Enquanto o processo de desapropriação avança, as famílias seguem cobrando que o direito a não-permuta, previsto nas diretrizes homologadas e reafirmado na Carta Denúncia, seja respeitado. Para elas, essa é a garantia de que o vínculo com o território não será rompido. “A gente vai lutando pra ver até onde vai”, diz Simária.


Paracatu de Baixo luta pelas suas raízes


#ParaTodosVerem: Ao centro, cartaz com mensagem “Se milagres desejais recorrei a Santo Antônio” fixado em um suporte de proteção transparente, que distancia as paredes manchadas por lama do local
Os moradores de Paracatu de Baixo mantém as marcas do rejeito nas paredes da Capela de Santo Antônio | Foto: Júlia Aguiar

Maria Imaculada da Silva, 68, nasceu e morou toda sua vida em Paracatu de Baixo (origem), lugar em que trabalhou com atividades rurais desde a infância. Ela passou a morar em Mariana após o desastre-crime, e no último ano, foi para o reassentamento. Imaculada conta que antes do rompimento, seu terreno era bom para plantar, tinha água à vontade, moinho para fazer fubá e criação de animais, coisas que ela não pode ter no reassentamento. “Então a gente perdeu muita coisa. Aqui era bem melhor, sem comparação. Minha vontade é de voltar,” disse.


#ParaTodosVerem: Ao centro da foto, senhora de cabelos pretos presos, usando uma blusa branca com diversas imagens de figuras católicas. Ao fundo, árvores e folhas secas no chão.
Maria Imaculada no Sítio do Foca, onde foi servido o almoço depois da carreata de Nossa Senhora Aparecida, em Paracatu de Baixo | Foto: Letícia de Lelis

A casa no reassentamento não acomoda seu trabalho ou modos de vida. O terreno grande da casa de Imaculada em Paracatu foi substituído por um terreno acidentado e sem espaço para plantações no reassentamento. “Porque aqui [em Paracatu origem] ao menos os terrenos todos são bons de plantar e lá só aquela terra vermelha para sujar o pé”, relata. Mesmo morando longe, Imaculada ainda tem cultivos ativos na casa que cresceu. Ela precisa que alguém a leve de carro, já que as comunidades são distantes, mas não deixa de cuidar dos plantios. Com problemas de saúde e de visão, Imaculada lamenta a vida e a rotina que ficaram para trás.


A falta de identificação com o lugar imposto aos moradores também têm relação com a ausência de diálogo entre as mineradoras e a comunidade, que se mostra presente quando o assunto é a desapropriação, como destaca Imaculada. “Até hoje ninguém chegou perto de mim e me perguntou assim: ‘Você quer que derrube a sua casa? O que você quer que faça com seu terreno?”. Mesmo com 10 anos de luta por seus direitos, Imaculada não tem uma casa que corresponda com seu estilo de vida, e várias pessoas como ela correm perigo de perder o local que as conecta às suas raízes e histórias.


“Eu acho que eles pensam assim, só porque a lama passou aqui e eles levaram todo mundo para Mariana, eles acham que são donos da gente. Só que eu já acho que não é assim” (Maria Imaculada)


A Repactuação estabelece um prazo de 360 dias ao município de Mariana, a partir da homologação do acordo, para apresentar um projeto para a construção dos memoriais. Depois, se inicia um novo prazo de 36 meses para a conclusão das obras. Representantes da, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), estão em contato com as comunidades atingidas para criação de um memorial que valorize as histórias locais para além do crime. Os consultores da UNESCO já propuseram a elaboração de um “Museu de Território Sensível”, que não limitaria a ideia do memorial apenas à um prédio e englobaria todo o território atingido, com as ruínas, pontos de memória e manifestações culturais. 


Antônio Geraldo de Oliveira, 73, conhecido como Seu Nié, também é nascido e criado no subdistrito. Seu Nié não sabia das discussões para erguer um Memorial em Paracatu. “Aqui hoje tá um lugar isolado, hoje tá ruim, aqui é um deserto. Um museu aqui vai servir pra turista”, disse o morador.


#ParaTodosVerem: Senhor ao centro da imagem usando boné preto e camisa azul clara. Ao fundo, pode-se observar um tronco de árvore, um caminhão e um homem andando.
Seu Nié é o responsável por organizar a Folia dos Reis e a festa do Menino Jesus junto com seus irmãos. Essa é uma tradição herdada de seu pai | Foto: Júlia Aguiar

Após o crime, o dia a dia de Seu Nié, que incluía o cuidado com os animais e o trabalho rural, foi afetado. Ele não se adaptou a vida na cidade e reconstruiu sua casa em Paracatu (origem) com o próprio dinheiro, lar em que morou até o ano passado, quando se mudou para o reassentamento. Apesar da mudança, Nié ainda cria seus animais em seu território de origem. “Venho todo dia olhar uma criação minha aqui. Tô vendo a hora que eles vão roubar os animais que eu tenho, porque não tem condição de criar lá [no reassentamento]. Porque aqui nós tínhamos tudo, lá nós não temos”. Em relação a desapropriação, Seu Nié não exita ao dizer que o direito de residir como merecem, já foi tomado. Nem mesmo o acesso à igreja do reassentamento é livre como era na comunidade de origem.


#ParaTodosVerem: Dois homens, um de blusa branca e um de blusa bege, enfeitando caçamba da caminhonete com tecidos e balões azuis e brancos. No centro da caçamba, imagem de Nossa Senhora Aparecida cercada de flores brancas, azuis e amarelas. Ao fundo, casas, pessoas e montanhas.
Preparação para a carreata de Nossa Senhora Aparecida, no reassentamento de Paracatu, em 12.10.2025 | Foto: Letícia de Lelis

Uma forma de manter a identidade de Paracatu de Baixo viva é a celebração de festas tradicionais, que reúne os moradores em momentos de fé e resistência. A Capela de Santo Antônio, que ainda carrega as marcas da lama na fachada, é um dos principais motivos de ida dos moradores ao subdistrito, para manter viva a conexão com a terra. A festa em honra a Nossa Senhora Aparecida é uma dessas tradições, com uma carreata que sai da igreja do reassentamento, passa pela Capela de Santo Antônio, e segue por Pedras, Águas Claras e Cláudio Manoel, antes de voltar para Paracatu (origem). Em todos locais, a comunidade para e reza em homenagem à Santa. Durante essa comemoração, Seu Nié mostrou sentir na pele a importância dessas manifestações para a união da comunidade. “Aqui nós temos uma vivência muito boa, numa casa de Paracatu [origem]. Olha, lá [no reassentamento] nós não temos um movimento desse”, afirma.  A memória coletiva de Paracatu resiste nessas festas religiosas, ao buscarem um resgate cultural que não vem junto com o novo acordo e com os reassentamentos.



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