EDITORIAL | O tempo não repara o que a justiça não alcança
- Eduarda Belchior
- 31 de out.
- 3 min de leitura
Atualizado: 3 de nov.
47º edição

Há crimes que não terminam, apenas mudam de forma. Eles atravessam o tempo e se enraízam na memória e no cotidiano de quem fica. O rompimento da barragem de Fundão, em 2015, é uma dessas feridas abertas que, mesmo dez anos depois, ainda latejam em cada território e em cada corpo atingido. Dizem que Fundão foi a sirene de Brumadinho. No Memorial de Brumadinho, o verso de Adélia Prado recebe quem chega, dizendo que "o que a memória ama fica eterno". Ali não são lembradas apenas as suas 272 vidas perdidas, mas também as 20 levadas pela lama da Vale e BHP (Samarco) em Mariana. Para essas e tantas outras, o verso de Adélia resume: "Te amo com a memória imperecível".
Seu Filomeno, um dos nomes na lista de atingidos que morreram sem ver a reparação, e que hoje estampa a capa desse especial da 47ª edição do jornal Lampião, era morador de Bento Rodrigues. Homem de palavra firme, costumava dizer que preferia morrer sem ser ressarcido, a ser ressarcido sem justiça. Seu Filomeno faleceu sem sequer morar na casa que lhe era devida, mas deixou um legado que resiste ao tempo: o de quem não permitiu que sua dignidade fosse levada pelo desastre-crime.
Fruto de uma construção possível apenas quando a universidade e a comunidade caminham no mesmo passo, o Lampião nasce e renasce a cada edição a partir desses encontros. Como guardião de uma memória social e política, o jornal enfrenta o fazer jornalístico com sensibilidade, escuta ativa e seriedade. O desafio desta edição especial foi marcado pelo ritmo acelerado e a intensidade desse compromisso. Foram somente três semanas entre a lapidação da ideia, o mergulho em campo, a produção e escrita das histórias, até a chegada à gráfica na terceira semana de outubro.
O dia cinco de novembro de 2025 marca os dez anos do rompimento da barragem de Fundão e para alcançar as comunidades, após cinco anos, esta edição especial do Lampião retorna também como jornal impresso, e traz consigo o gesto de tocar e ser tocado. O jornal construído junto com as - e a partir das - comunidades atingidas, circula nas mãos de quem vive nos territórios, permitindo que as histórias ocupem espaços e promovam diálogos, ultrapassando as paredes da universidade, o que reforça o caráter extensionista e acessível de um jornal-laboratório universitário.
Cada produção, tecida pela união de muitas mãos, é uma tentativa de sentir e traduzir experiências e emoções. Agradecemos às comunidades atingidas por nos acolher, permitir a escuta e nos confiar suas memórias de um passado ainda tão vivo e doloroso. Estendemos nosso reconhecimento e gratidão à Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão de Mariana (CABF), à Cáritas, ao Instituto Guaicuy e ao grupo de pesquisa Conflitos em Territórios Atingidos da Universidade Federal de Ouro Preto (CONTERRA-UFOP), parceiros essenciais na confecção do jornal.
Também contamos com o apoio da Reitoria da UFOP, na pessoa do chefe de Gabinete, do nosso Departamento de Jornalismo e da Divisão de Transportes da UFOP (Proplad), que nos ajudaram a chegar aonde as histórias estavam. São estes suportes que tornam possível cumprir com o papel cidadão do jornal Lampião.
Os rios Gualaxo e Rio Doce continuam correndo e, mesmo que ainda carreguem em suas águas os vestígios de um crime que nem mesmo o tempo poderá lavar, eles seguem abrindo caminhos. Assim como os rios, as pessoas atingidas vivem, lembram, lutam e resistem, apesar das marcas deixadas nesse fluxo de vida. Suas histórias carregam dores, perdas, lutas, mas também gestos de força, reconstrução e afeto, lembrando que memória e vida caminham lado a lado.









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