MANIFESTO | 10 anos do rompimento da barragem do Fundão
- Comissão dos Atingidos e Atingidas pela Barragem de Fundão (CABF)
- 5 de nov
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No dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, em Mariana (MG), deu início a um dos maiores desastres socioambientais da história do Brasil. O que aconteceu não foi um acidente técnico, mas um crime com causas estruturais, cujos efeitos permanecem, dez anos depois, sendo profundamente sentidos por nós e pelas comunidades atingidas ao longo da Bacia do Rio Doce.
Desde então, nossos modos de vida tradicionais foram profundamente modificados, primeiro pela destruição das áreas onde nascemos, depois pelo deslocamento forçado que impôs a ruptura cotidiana com o território. Povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e comunidades rurais estão, ainda hoje, com suas atividades econômicas impossibilitadas. A agricultura, a pesca e a criação de animais deixaram de ser viáveis em muitos locais, devido à passagem da lama contaminada por metais pesados. Em diversas casas, os quintais ainda abrigam esse material, e a exposição aos rejeitos tóxicos continua sendo parte do cotidiano. Não há confiança nos diagnósticos sobre a contaminação, e persistem incertezas quanto à segurança do solo, da água e dos alimentos. A biodiversidade do rio e de seu entorno continua severamente comprometida.
Os danos causados pelo rompimento ultrapassam o âmbito físico e alcançam o próprio tecido social das nossas comunidades. A reparação em curso não encerra o sofrimento cotidiano, pois o território de origem permanece em disputa com as mineradoras. Ainda que a lama tenha destruído muitos espaços de convivência, mantemos nossos vínculos culturais e espirituais com o local de onde viemos, preservando celebrações e práticas tradicionais.
No dia do rompimento, deixamos nossas casas juntos, mas o retorno ao lugar construído não aconteceu de forma coletiva, conforme prevê o princípio da isonomia. O processo de reassentamento tem sido marcado por atrasos, problemas nas construções e falta de diálogo transparente com as famílias. Casas entregues com defeitos, obras inacabadas e reparos que parecem nunca acabar têm comprometido o nosso bem-estar emocional, financeiro e social. A reparação do direito à moradia se transformou, ao longo de uma década, em mais uma violação de direitos, especialmente após o último ano, um período marcado por tensões e frustrações crescentes. A assinatura do Acordo do Rio Doce representou, na prática, a ausência do diálogo com as pessoas atingidas, que se viram, mais uma vez nesse exaustivo processo, obrigadas a lutar por protagonismo, reconhecimento e justiça em um cenário em que o diálogo havia sido unilateralmente interrompido, sem qualquer possibilidade de discutir a situação daqueles que ficaram sem moradia, ou sem acesso a outros direitos necessários para a efetivação da reparação integral.
Recentemente, a Samarco (joint venture da Vale S.A. e BHP Billiton) anunciou que todos os reassentamentos coletivos foram concluídos, uma informação que não corresponde aos fatos. Essa distorção da realidade, comum no setor, é uma manipulação da narrativa para minimizar os problemas que ainda enfrentamos nas nossas comunidades e criar uma falsa impressão de avanço no processo de reparação.
As consequências do desastre também se refletem profundamente na nossa saúde. São frequentes os relatos e diagnósticos de adoecimento físico e psicológico. Esses danos são agravados cotidianamente por um processo de reparação injusto e conflituoso, marcado também pelo abandono de alguns territórios. Especialmente nas áreas rurais, o sentimento de desamparo é intensificado, pois muitos de nós continuamos sem acesso a serviços básicos, infraestrutura adequada e apoio institucional.
A proposta de repactuação homologada tem se desenvolvido sem a nossa devida participação nas mesas de negociação e deliberação, o que compromete a transparência e a legitimidade do processo. Os termos de quitação de danos (ou de blindagem das empresas) estão sendo apresentados de forma unilateral, frequentemente impondo condições que exigem a renúncia de direitos já existentes e de eventuais direitos futuros que possam surgir em decorrência dos danos sofridos. Essa forma de condução reforça a desigualdade entre as comunidades e as empresas responsáveis, além de fragilizar a nossa confiança no processo de reparação. A ausência de diálogo efetivo e de protagonismo impede que as nossas reais demandas sejam consideradas e respeitadas, dificultando a construção de soluções justas e duradouras para a reparação integral dos danos causados.
É importante denunciar que, mesmo com o fim anunciado da Fundação Renova, o modelo de reparação permanece o mesmo. As práticas de exclusão, controle da informação e falta de escuta continuam sendo reproduzidas por Samarco e suas equipes terceirizadas. A mudança de nome, por si só, não corrige as violações em curso. O conflito de interesses persiste: o causador do dano ainda exerce o controle sobre a reparação.
Nesse contexto, reafirmamos a importância da permanência das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs). Elas são fundamentais para garantir o nosso acesso à informação qualificada, apoiar a nossa organização comunitária e fortalecer a possibilidade de participação nas tomadas de decisões do processo de reparação. Sem as ATIs, a disparidade técnica entre as partes se intensifica, comprometendo ainda mais a justiça do processo.
Dez anos após o rompimento, muitos de nós seguimos sem respostas, sem reparação e sem o reconhecimento que merecemos. Ainda hoje, inúmeras famílias lutam judicialmente para garantir seus direitos. A falta de justiça não é apenas uma questão do passado, mas uma realidade presente que insiste em se prolongar.
Parte disso pode ser observado na tentativa de desarticulação da Comissão dos Atingidos e Atingidas pela Barragem de Fundão com a desmobilização do espaço físico da organização. Esse processo fragmenta a luta, dificulta a construção de consensos e abre espaço para estratégias que favorecem os interesses dos empreendimentos minerários, em detrimento dos direitos dos atingidos. A desmobilização de estruturas fundamentais, como os escritórios de apoio, também sinaliza um recuo perigoso na garantia de participação efetiva. É preciso reafirmar que a reparação não pode avançar à custa do enfraquecimento das instâncias coletivas legitimamente constituídas ao longo dos anos.
Queremos demarcar que não lutamos por favores ou caridade, mas pelo que é nosso por direito! As nossas casas, os nossos corpos, os nossos territórios não estavam à venda. E não aceitaremos o tratamento dado na reparação como se fossemos mercadorias.
A ausência de participação efetiva compromete a legitimidade de qualquer medida adotada e aprofunda o nosso sofrimento, de quem já tiraram quase tudo (ainda resta dignidade). As comunidades exigem o direito de acompanhar, questionar e decidir sobre cada etapa do processo de reparação, para que seus interesses sejam respeitados e suas dores verdadeiramente reconhecidas. Afinal, o tempo não esconde o que é vivido, nem diminui a responsabilidade daqueles que devem reparar.
Permanecemos em luta até que a reparação integral seja garantida!
Endossa: Cáritas MG.









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