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Nicollas Alcântara

Crônica | Ouro Preto, por acaso

Atualizado: 18 de out.


#paratodosverem: Foto da Rua das Flores, em Ouro Preto, um dos principais pontos turísticos da cidade. Nesta imagem, podemos ver, após uma murada de pedra e um gramado extenso, ainda na metade inferior do quadro, uma rua de paralelepípedos com casas, predominantemente brancas, próximas uma das outras, e seus telhados, em vários tons de marrom, característicos da arquitetura colonial brasileira. Carros estão enfileirados no estacionamento em frente à rua, e, ao fundo, aproximadamente no centro da fotografia, a Igreja da Nossa Senhora do Carmo se faz presente, ao lado do famoso Museu da Inconfidência. Há ainda, ocupando quase toda metade superior da foto, uma serra distante, cinza escura e uma grande porção de céu, também em vários tons de cinza, totalmente nublado e com nuvens carregadas.

Ouro Preto sempre tem dessas: você nunca sabe quando vai tropeçar numa ladeira ou numa memória. Desde pequeno ando por essas ruas como se fossem uma extensão da minha própria história. A cidade, com suas pedras antigas e igrejas que parecem espiar por detrás das colinas, me acompanha há anos, mas, ainda assim, consegue me surpreender. Talvez seja porque, por aqui, a história não é apenas algo que se estuda ou se visita – ela está viva, enraizada em cada esquina.


Subindo a Rua Direita, como já fiz incontáveis vezes, sinto o peso da ladeira e da rotina. O engraçado é que, apesar de conhecer cada desnível das pedras, de vez em quando ainda escorrego em alguma que o tempo poliu demais. Hoje não foi diferente. Me segurei rápido num corrimão, como se já soubesse o que ia acontecer, um reflexo treinado pela vida inteira. O senhor que passava por mim, com seu chapéu de palha e olhar tranquilo, balançou a cabeça com um sorriso. "Cuidado, moço, um dia essas pedras te derrubam de verdade." Ri e segui em frente. Não era a primeira vez que caía – e certamente não seria a última.


Conhecer Ouro Preto desde criança é diferente de visitá-la. Para quem vê de fora, a cidade é quase um museu a céu aberto, com suas igrejas barrocas, suas histórias de ouro e sua arquitetura imponente. Mas, para mim, é o lugar onde cresci, onde as pedras das ruas contaram minhas histórias ao lado das de Tiradentes e Aleijadinho. O som dos sinos já faz parte do cotidiano, tanto que, às vezes, quase nem os ouço mais. Eles são o pano de fundo de uma vida marcada por essa convivência com o passado e o presente, entre o ouro que reluz nas histórias e a vida comum que se desenrola nos mercados, escolas e nas conversas de esquina.


Hoje, enquanto caminhava pela cidade, parei em frente à Igreja de São Francisco de Assis, uma das tantas que enchem a paisagem daqui. O projeto de Aleijadinho, imponente e refinado, sempre me impressiona, mas o que me prende mesmo o olhar é o teto, pintado por Manoel da Costa Ataíde. A Assunção da Virgem parece flutuar, desafiando o tempo, as cores ainda vivas, como se Ataíde quisesse capturar algo além da técnica. Tantas vezes já a vi que é quase como uma velha amiga. Mas, mesmo assim, cada vez que a observo com atenção, descubro um detalhe novo. É isso que Ouro Preto faz com a gente: a cada esquina, uma nova descoberta, mesmo para quem já vive aqui há décadas.


No mesmo dia, sentei-me em uma daquelas escadas da Praça Tiradentes, bem onde existe a sua estátua. Um ponto que, para muitos, é apenas uma atração turística, mas, para mim, sempre foi parte do cenário da cidade. Olhando para o mártir de bronze, me lembrei das muitas tardes que passei por ali, vendo a cidade mudar com o tempo. Para os turistas, a estátua de Tiradentes e as ruas ao redor permanecem as mesmas, congeladas no tempo como em uma fotografia. Mas para quem vive aqui, a cidade se transforma continuamente. Para nós, ouropretanos, tudo muda. As lojas antigas dão lugar a novos comércios, os rostos familiares que cruzam a praça envelhecem, e até o ritmo da cidade parece diferente conforme os anos passam.  Inclusive, os turistas, com suas câmeras e olhares curiosos, passam rápido sem perceber a verdadeira natureza desse lugar. Para eles, é uma cidade-museu. Para mim, é casa.


Ver Ouro Preto sendo invadida pelo turismo sempre me deixa com sentimentos mistos. Por um lado, é bom ver a cidade viva, com pessoas que vêm de longe só para conhecer o lugar que eu chamo de lar. Por outro, sinto que parte da essência se perde no meio de tantos flashs e visitas guiadas. Às vezes, parece que as pessoas vêm aqui buscando uma cidade que já não existe mais – ou que nunca existiu. Querem ver Vila Rica, querem ver o ouro, as histórias de heroísmo, mas não prestam atenção na vida que ainda pulsa, nas crianças que correm pelas ruas de pedra, nos vendedores que oferecem seus doces caseiros.


Por falar em doce, é impossível caminhar por Ouro Preto sem esbarrar com algum vendedor de doce de leite ou goiabada. Peguei um pedaço de doce de leite, ainda quente, e continuei caminhando pela cidade. O sabor doce, familiar, derretendo na boca, me trouxe de volta à infância, às vezes em que minha mãe comprava o doce direto do tacho para nós. Ouro Preto tem esse jeito de fazer o tempo parar, de te levar para outros momentos, como se cada passo nas ruas de pedra fosse uma viagem a uma lembrança antiga.


Com o cair da tarde, a cidade começa a se transformar. As ruas, que já eram tranquilas, vão ficando ainda mais silenciosas e as luzes das casas coloniais se acendem, criando uma atmosfera quase mágica. O frio sobe das colinas e a brisa gelada que corre pelas ruas traz um ar de nostalgia. É nesse momento que Ouro Preto revela sua verdadeira essência, longe dos turistas e das excursões. É quando a cidade se recolhe e fica apenas com seus moradores, aqueles que conhecem seus segredos, suas dores e suas histórias.


De volta ao banco na praça, observo a cidade que me criou. Ouro Preto, com suas ladeiras traiçoeiras, suas igrejas que parecem vigiar cada passo e suas pedras que carregam o peso de séculos, continua sendo um lugar único. Para quem vem de fora, é uma cidade cheia de mistérios e histórias. Para mim, continua sendo a minha casa. Uma casa antiga, cheia de memórias, mas sempre pronta para me surpreender – mesmo depois de tanto, ou de tão pouco, tempo.

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