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Reparação “fantasiosa” e sem a voz das comunidades

  • Cecília Araujo e Fernanda Germano
  • 5 de nov.
  • 7 min de leitura

47º edição


Entre “narrativas fantasiosas” da Samarco e falta de participação nos processos decisórios, atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão alegam exclusão e atraso nas reparações.


#ParaTodosVerem: A imagem contém um campo de futebol com o gramado sem manutenção, com um portão de ferro na cor verde caído no chão. Ao fundo, uma trave de ferro branca e grandes verdes cercando o campo.
Recém inaugurado, campo de Paracatu tem sinais de abandono pela Samarco e prefeitura, time local se desloca para Padre Viegas em dias de jogos | Foto: Cecília Araujo

O 5 de novembro de 2025 marca não somente os dez anos do desastre-crime da Vale e BHP (Samarco), mas também a exclusão dos atingidos nas mesas de negociação de processos reparatórios e a impunidade das empresas mineradoras. Em 2016, o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado pelos Governo Federal, de Minas Gerais, Espírito Santo e empresas mineradoras, criou a Renova, sem prever o acesso dos atingidos às instâncias deliberativas do processo. Tanto que, em 2018, um novo acordo foi necessário, o TAC Governança, com a participação do Ministério Público Federal (MPF), na tentativa de incrementar alguma participação efetiva dessas comunidades. O processo acabou sendo prejudicado pela atuação da Renova, que não possuía em seu conselho deliberativo uma composição capaz de garantir voz e vez às comunidades atingidas.


Em 2023, a Secretaria-Geral da Presidência da República entregou ao Tribunal Regional Federal da 6ª Região uma proposta para integrar essa população no acordo, a fim de assegurar a participação social na redefinição de propostas. Mas as Mesas de Repactuação implantadas, que previam reuniões coletivas com representantes de instituições públicas e das empresas responsáveis pelo rompimento, não trouxeram respostas efetivas aos pleitos. Até que, em 2024, chega o Novo Acordo do Rio Doce, a conhecida Repactuação, que foi negociada entre representantes dos Poderes Executivo, Judiciário e mineradoras, sem inclusão dos atingidos para escuta e participação nas reuniões decisórias. Para eles restaram consultas públicas, visitas, caravanas, entre outras alternativas que, muitas vezes, sequer trouxeram devolutivas efetivas.


Nessa direção, de limitações impostas à participação social das pessoas atingidas, dos R$ 132 bilhões pactuados na Reparação dos danos do desastre-crime minerário, o texto da Repactuação destinou ao Conselho de Participação Social da Bacia do Rio Doce, presidido pelo ministro-chefe da SGPR, e não por um representante dos atingidos, menos de 5% do montante. O Conselho é a única instância com uma composição relevante de pessoas atingidas. 


Para além da divisão proposta, o Acordo de Repactuação extinguiu o TTAC e vários outros procedimentos administrativos e judiciais, em que alguns direitos haviam sido garantidos pela luta das pessoas atingidas ao longo desses dez anos. Um deles era a posse, pelos antigos moradores, dos territórios atingidos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, devastados pelo mar de rejeitos. Agora esses territórios deverão passar por um processo de desapropriação e tombamento. A Cláusula 47, do Anexo 1 do Novo Acordo do Rio Doce, determina a “impossibilidade de utilização da área por seus proprietários, para assegurar a preservação da história e memória do local.” 


Entregas falsas 


Condenadas, em julho de 2024, pela Justiça Federal por “narrativas fantasiosas”, o que seria um tipo de propaganda enganosa, Renova, Samarco, Vale e BHP tiveram que pagar quase R$ 56 milhões por danos materiais e dano moral coletivo. 


As empresas financiaram campanhas publicitárias que tentavam minimizar as consequências do rompimento da barragem de Fundão, gastando cerca de R$ 28,1 milhões entre 2018 a 2021, segundo o Ministério Público de Minas Gerais. A ação civil pública proposta demonstra como as empresas veiculavam informações falsas, imprecisas ou incompletas sobre assuntos fundamentais para a população, como a toxicidade dos rejeitos, a qualidade da água, a indenização e o reassentamento. Para impedir que continuassem incorrendo no crime, a sentença proibiu essas publicidades e impôs o monitoramento das ações pela Administração Pública. 

Mesmo após esse episódio, em julho deste ano, a Samarco divulgou no site oficial da empresa uma nota afirmando que os reassentamentos dos novos Bento e Paracatu, em Mariana, foram 100% concluídos, com todos os “388 imóveis e 22 equipamentos públicos” finalizados. A empresa ainda publicou a informação falsa, como matéria paga online, em veículos jornalísticos como a Rádio Itatiaia. Mas, ao contrário disso, é possível facilmente constatar obras em construção, outras inacabadas ou em constantes reparos nos novos subdistritos de Bento e Paracatu. O Bar da Sandra, por exemplo, segue em construção bem no centro do reassentamento. No antigo Bento Rodrigues, era parada obrigatória entre os viajantes da Estrada Real que visitavam Bento (origem). O campo de futebol, também em Novo Bento, que promete contar com estrutura de estádio, também está em construção.


#ParaTodosVerem: A imagem contém um homem adulto usando uma camisa em tom verde-água escura. Ele está à frente de um portão de ferro com a cor preta.
Romeu não recebeu todos os recursos esperados para viver no reassentamento | Foto: Cecília Araujo

Outros espaços que já estão prontos não são utilizados por irregularidades na preservação ou apresentam problemas constantes de construção. É o que lamenta Romeu Geraldo de Oliveira, 50 anos, presidente da Associação dos Moradores de Paracatu: “O time daqui tá jogando no campo de Padre Viegas, sendo que nós temos uma estrutura boa aqui, simplesmente por incompetência das empresas e por falta de manutenção.” O novo campo de futebol já apresenta sinais de abandono, como portão quebrado e gramado sem cuidados.


As ruas do reassentamento possuem diversos remendos no asfalto, muitos deles resultantes de problemas da rede hidráulica subterrânea. “Porque hoje nós temos o asfalto todo remendado, tampado de terra. Nossa água potável vazando (...) Os canos simplesmente não aguentam. Estamos em um reassentamento novo com asfalto desse jeito”, relata Romeu. Vanessa Aparecida Isaías, moradora de Paracatu de Baixo, 29, reforça a precariedade das estruturas públicas entregues à população: “Quando eles falam que está 100% concluído, não está. A estrutura da minha casa é boa, mas drenagem de água, as coisas da comunidade num todo, não estão concluídas. Eles entregaram coisas para a prefeitura, ela fala que não entregou para eles, aí fica nesse jogo de empurra.”


#ParaTodosVerem: A imagem contém uma rua asfaltada no reassentamento de Paracatu de Baixo, apresentando um remendo de asfalto novo e inacabado com terra. Ao fundo, casas brancas recém construídas, um lote vazio e cercas dos imóveis.
As ruas do reassentamento de Paracatu de Baixo apresentam remendos no asfalto, alguns tampados apenas com terra | Foto: Cecília Araujo

Lugar estranho


A maior parte das casas foram entregues às famílias atingidas, mas a adaptação às moradias continuam sem solução por parte da Samarco, dificultando que as pessoas retomem suas vidas. Romeu explica que, antes do rompimento da barragem, sua única fonte de renda era a fabricação de sorvete. E, apesar dos materiais de produção terem sido entregues pela extinta Renova, a ausência do projeto arquitetônico detalhado dificultou a fabricação do alimento. “Simplesmente me entregou a máquina, me entregou tudo e eu não posso fazer o sorvete. Eu preciso do alvará da vigilância sanitária. (...) Já fui notificado com alto risco sanitário, porque tem que ter o alvará. A Samarco falou que não é responsabilidade deles”, diz Romeu.


#ParaTodosVerem: A imagem contém alguns elementos da propriedade de Romeu, presidente da Associação dos Moradores de Paracatu, com paredes revestidas em tom verde-água claro. Duas caixas de isopor empilhadas, um armário de ferro cinza ao lado, máquinas para produção de sorvete e um freezer vertical com garrafas e latas de cerveja.
Até hoje Romeu sequer pode desembalar o equipamento necessário a retomar sua antiga sorveteria | Foto: Cecília Araujo

Os altos custos de vida nos reassentamentos também preocupam os moradores. Segundo Romeu, as contas de energia, o solo improdutivo em Paracatu (origem) devido aos rejeitos vindos da lama e a impossibilidade de criar animais nas casas no novo Paracatu são algumas das dificuldades de adaptação dos moradores. Outro desafio diz respeito, portanto, às oportunidades de emprego e renda, diante da mudança de uma comunidade de características rurais para um reassentamento urbano: “40% da comunidade aqui não teve estudo, não tem um emprego para ganhar mais”, completa.


Moradora de Bento Rodrigues, Simária Caetano Quintão, 52 anos, contou ao Lampião como se sente em relação às diferenças de sua comunidade de origem com o Novo Bento. “O que mais faz falta lá é o calor humano. (...) Aqui [em Bento origem] a gente tinha cachoeira, pescava, nadava, tinha campo de futebol, tinha tudo, tinha vida. Lá [no reassentamento] é um lugar triste com pessoas novas, pessoas que você não conhece. Os meninos que foram daqui também cresceram, você já não os conhece, lá é completamente diferente. Aqui é vida. Mesmo destruído, continua sendo o melhor lugar do mundo. É aqui que a gente busca energia. É aqui que a gente sai mais forte. É aqui que a gente vive.”


Pseudo-participação


Outra bandeira levantada pela Renova e atualmente mantida pela Samarco é a de que os processos construtivos das casas tiveram participação plena e livre de cada morador. A pesquisadora do Grupo Conterra e professora adjunta do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFOP, Flora Passos, 39 anos, contesta essa afirmação explicando que


é possível falar somente em pseudo-participação. Segundo Flora, as escolhas nunca foram “livres e bem informadas.”


Uma das etapas após a aprovação do projeto arquitetônico, sempre conduzida pela Renova, até antes de sua extinção pelo Acordo da Repactuação, eram os chamados “feirões”. Neles, a Renova oferecia um cardápio limitado e pré-definido, unilateralmente e por ela mesma, de pisos, azulejos, portas, janelas e outros materiais de acabamento, mas sem antes consultar os futuros moradores sobre suas reais necessidades. Flora exemplifica a situação: “O fogão a lenha é um exemplo emblemático que foi sempre imposto para as famílias. A empresa [dizia que por razões técnicas impostas às pessoas atingidas] precisava garantir um modelo de fogão a lenha pré-fabricado. Teve que ser uma luta muito grande da comunidade para explicar os modos de fazer a comida e como as famílias precisavam de fogão muito mais resistente, um fogão moldado in loco.” 


Além disso, ao contrário de como são realizados os contratos com arquitetos e engenheiros nos empreendimentos privados, as pessoas atingidas tiveram acesso apenas a representações simplificadas como maquetes eletrônicas e projetos conceituais, durante a elaboração dos projetos, sem informações que detalham, por exemplo, as condições do terreno e estrutura dos imóveis. Os projetos complementares, que envolvem as redes hidráulica e elétrica, só se tornaram de conhecimento dos moradores na entrega de suas casas. Os problemas decorrentes disso surgem agora e no futuro, no que a pesquisadora chama de pós-morada, gerando danos constantes à funcionalidade das casas, aos modos de vida dos moradores e à qualidade de vida dos reassentamentos.


Flora diz que situações que aparecem no processo de repactuação, sem o conhecimento prévio e o consentimento das comunidades, sugerem o favorecimento das empresas mineradoras na região. “Quando as famílias exigiam os projetos complementares, a Renova alegava que, dentro do processo dos acordos judiciais, eles deveriam entregar só documentos que fossem numa linguagem mais acessível. Ou seja, eles usavam os acordos judiciais, na verdade, para omitir informações que as famílias exigiam para entenderem como se adaptar aos próprios imóveis.”


Uma década se passou desde o rompimento e parte das pessoas atingidas ainda não foram judicialmente reconhecidas, o que as obriga a aguardar o cumprimento dos acordos para reconstruir a vida após tantas perdas.


Segundo moradores, equipamentos públicos construídos nos reassentamentos foram abandonadas e estão sem utilização pela comunidade atingida, como o campo de futebol em Paracatu.



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