Após duas décadas de atraso e sem aplicação satisfatória das Leis que instruem o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, nova legislação municipal já chega enfrentando críticas em Mariana
Em junho de 2024, a cidade de Mariana sancionou a Lei nº3.798/2024, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas escolas municipais a partir de 2025. No entanto, o que poderia ser celebrado como um avanço na educação inclusiva tem sido amplamente criticado como uma medida tardia, refletindo a lentidão das autoridades em cumprir a legislação já estabelecida por leis federais há duas décadas.
Historicamente, a legislação brasileira fala sobre a inclusão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no currículo escolar com a Lei Federal nº 10.639 de 2003. Entretanto, uma pesquisa realizada pelo Instituto Alana e Geledés Instituto da Mulher Negra, em 2022, revelou que mais de 70% das cidades brasileiras, por meio de suas secretarias municipais de educação, realizam pouca ou nenhuma ação para cumprimento da lei de 2003.
Em 2008, após cinco anos, surge uma nova legislação federal, a 11.645, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tornando obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira e indígena tanto em instituições públicas quanto privadas. Essa legislação ampliou o escopo da Lei nº 10.639 de 2003, que tornava obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, ao incluir também a história e cultura dos povos indígenas.
Mariana, com uma população majoritariamente composta por pessoas não-brancas, segundo o censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), reflete essa realidade. Dos 61.387 habitantes do município, 22,2% se identificam como pretos, 51,1% como pardos, e 0,11% como indígenas. Esses números destacam a urgência de um currículo escolar que aborde e valorize essas culturas, como também reforçam o descaso com a aplicação das leis.
A Lei municipal 3.798 de 2024, propõe impactos para a comunidade escolar de Mariana e tem como foco dar ênfase ao trabalho realizado de acordo com a Matriz Curricular Municipal de Mariana, atendendo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Assim, a administração municipal pretende proporcionar o fortalecimento do trabalho em sala de aula dessa temática tão importante e promover encontros com amplos setores da comunidade educacional marianense para falar sobre educação Afro-Brasileira e Indígena.
Três quartos da população de Mariana é composta de pessoas não-brancas, que têm a sua raça ou cor atendida pela lei.
A Lei sancionada em 27 de junho de 2024, pelo prefeito Celso Cota Neto, que é uma resposta ao Projeto de Lei nº 81, e que entrará em vigor apenas em 1º de janeiro de 2025, diz estabelecer um compromisso com a educação inclusiva e antirracista, buscando integrar esses conteúdos de forma transversal ao currículo escolar, principalmente nas disciplinas de Arte, Língua Portuguesa e História, compondo o Eixo Educação para a Vida do Programa de Educação em Tempo Integral.
A subsecretária de desenvolvimento da educação básica, Vanilda Ribeiro, destacou que a prefeitura já está tomando medidas para garantir a efetiva implementação da nova lei. Segundo Vanilda, as propostas incluem o desenvolvimento de ações em parceria com a comunidade local e movimentos sociais, com o objetivo de promover atividades que valorizem as culturas afro-brasileira e indígena.
Além das aulas regulares, esses temas serão trabalhados em atividades complementares, fortalecendo a valorização das contribuições culturais dos povos africanos e indígenas para a formação da sociedade brasileira. A lei pretende incentivar as escolas a explorar e divulgar aspectos da cultura afro-brasileira e indígena, como religião, música, dança e culinária, promovendo um entendimento mais amplo e profundo dessas tradições. Para apoiar essa implementação, as escolas poderão, ainda, contar com a colaboração de entidades do movimento afro-brasileiro, universidades e outras instituições de pesquisa.
Para tentar garantir a efetiva implementação da “nova” legislação e responder às críticas sobre a tardia inclusão das culturas afro-brasileira e indígena no currículo escolar, a Prefeitura de Mariana está buscando uma abordagem mais participativa e comunitária. Ao invés de limitar as mudanças ao conteúdo pedagógico tradicional, a administração municipal reconheceu a importância de envolver a comunidade escolar e os movimentos sociais locais no processo educativo.
"Estamos desenvolvendo ações que vão além do currículo. Queremos que a comunidade participe ativamente desse processo, ajudando a moldar o conteúdo que será ensinado nas escolas. A valorização da cultura afro-brasileira e indígena é fundamental para o fortalecimento da identidade de Mariana como um todo", afirmou a subsecretária.
Após tanto tempo de inércia, a sanção desta lei municipal parece mais uma tentativa de forçar o cumprimento de uma obrigação básica do que uma iniciativa inovadora ou transformadora. Joatan Nunes, doutorando em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto, tece críticas à nova legislação, apontando problemas na redação, como o uso inadequado do termo "índios" no artigo 2º, o que, segundo ele, pode comprometer a aplicação adequada da legislação. "Se a própria lei já apresenta falhas, como podemos esperar uma implementação eficaz?", questiona.
A crítica de Joatan sobre o uso do termo "índios" destaca uma falha importante na redação da lei. O termo é considerado inadequado por muitos estudiosos e ativistas, que preferem e recomendam a utilização de "povos indígenas" ou o nome específico das etnias. Essa imprecisão linguística pode refletir uma falta de entendimento mais profundo das questões indígenas, o que compromete a efetividade da legislação e sua aplicação nas escolas.
Danilo Borum - Kren, natural do distrito de Santo Antônio do Leite, Ouro Preto/MG, cacique e líder indígena do povo Borum - Kren, também critica a abordagem genérica frequentemente adotada ao tratar dos povos indígenas nas escolas. Danilo afirma que, apesar de ser nova, a lei repete erros do passado e que não há um esforço real para incluir as especificidades dos diferentes grupos indígenas na região marianense.
O cacique também critica a abordagem genérica que muitas vezes é adotada ao tratar dos povos indígenas nas escolas. Segundo ele, “Hoje tem - se basicamente três etnias estabelecidas dentro de Mariana, que somos nós o povo Borum - Krem como povo originário, tem o povo Puri, que chegou há um tempo e mais recente chegou os Warao, que são imigrantes, então assim a gente está falando de diversidade três povos, três povos distintos, três povos indígenas com culturas diferentes. Pouco se é dito sobre isso, pouco se ensina sobre cultura indígena, sobre o que é ser indígena e isso é muito importante”
Pamela Cristina de Gois, professora de História no Centro de Educação Municipal Padre Avelar (Cempa), traz à tona a realidade das salas de aula em Mariana. "O currículo de História ainda é dominado por uma perspectiva eurocêntrica, e essa nova lei, apesar de necessária, chega com muito atraso. A inclusão desses temas no currículo já deveria ser uma prática comum, mas, na realidade, os professores enfrentam um currículo que pouco incentiva essas discussões", explica. Ela destaca, ainda, a falta de materiais didáticos adequados e o limitado incentivo por parte das instituições, o que torna a aplicação da lei um desafio diário para os educadores.
A professora reforça a necessidade de uma abordagem interdisciplinar. "A lei ainda está muito restrita à área de História. Há uma falta de diálogo entre as disciplinas, e poucos professores, especialmente os mais jovens, se dedicam ao tema. Precisamos de um currículo que integre essas culturas em todas as áreas do conhecimento, não apenas como um apêndice à História", argumenta Pamela. Segundo a lei aprovada, os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar e ao longo do ano letivo, mas com ênfase nas disciplinas de arte, de língua portuguesa e história.
Enquanto as autoridades locais colocam em andamento a aplicação desta Lei, permanece a dúvida se ela conseguirá romper o ciclo de negligência que marcou a aplicação das diretrizes federais nos últimos anos. Espera-se que essa iniciativa seja mais do que uma resposta tardia e se transforme em uma verdadeira mudança na forma como a história e a cultura são ensinadas nas escolas do município. "A esperança é a penúltima que morre, por último morremos nós. A população preta e parda de Mariana precisa estar vigilante, exigindo as mudanças necessárias para que a educação de qualidade, como estabelece a Constituição Federal, se torne uma realidade", conclui Joatan.
BOX DE INFORMAÇÕES As religiões afro-brasileiras, como o Candomblé, são sistemas de crenças originados das práticas espirituais trazidas pelos africanos escravizados. Elas são marcadas pela adoração de orixás, entidades associadas a forças da natureza e ancestrais. Esses cultos integram elementos de tradições africanas, indígenas e europeias, criando miscigenação cultural que reflete a construção das comunidades negras e indígenas no Brasil. A música afro-brasileira e indígena é um meio de preservação e transmissão cultural. Os ritmos afro-brasileiros, como o samba e o maracatu, têm raízes na África e carregam elementos de resistência e identidade. Já as músicas indígenas utilizam instrumentos como flautas e maracás, acompanhadas de cantos que narram mitos e histórias ancestrais. As danças afro-brasileiras, como o jongo e a capoeira, são expressões corporais que combinam ritmo, movimento e espiritualidade, muitas vezes ligadas a celebrações religiosas. Já as danças indígenas, como o toré e o cateretê, desempenham um papel central nos rituais de várias etnias de povos indígenas, simbolizando a conexão com a natureza e os espíritos. Ambas as tradições reforçam a identidade cultural e a resistência dos seus povos. A culinária afro-brasileira é um legado cultural dos povos africanos trazidos ao Brasil, adaptada com ingredientes locais. Pratos como acarajé, feijoada e vatapá são exemplos de uma cozinha que carrega histórias de luta e adaptação. Já a culinária indígena brasileira é baseada em ingredientes naturais e técnicas tradicionais de preparo que foram passadas de geração em geração. Alimentos como mandioca, milho, peixe e frutas são elementos centrais na dieta indígena. Pratos como o beiju, a moqueca e o tacacá são exemplos. |
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