Após quase nove anos do crime socioambiental das mineradoras Vale e BHP (Samarco) em Mariana, os atingidos ainda enfrentam desafios emocionais e psicológicos antigos e novos
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Ocorrido em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, pertencente às mineradoras Vale e BHP (Samarco), completa nove anos agora em 2024. Os danos causados desde então não se limitam ao meio ambiente, a saúde física, psicológica e emocional da população atingida continua severamente comprometida.
Segundo um estudo de 2022, “Saúde Mental e Atenção Psicossocial para Populações Afetadas por Barragens: O impacto do desastre à saúde de uma coletividade”, da Fundação Oswaldo Cruz com apoio do Ministério da Saúde, muitos habitantes das regiões devastadas sofrem com doenças relacionadas ao contato com os rejeitos tóxicos, como dificuldades respiratórias e doenças de pele.
A perda de suas casas, suas comunidades e o deslocamento forçado das áreas rurais para a sede do município de Mariana criou um estado de ansiedade e estresse contínuos, devido às abruptas mudanças que aconteceram e também às que continuam ocorrendo no cotidiano dessas pessoas.
As múltiplas violências enfrentadas, a sensação de insegurança e a frustração com a lentidão dos processos de reparação e compensação intensificam ainda mais a crise. De acordo com a "Pesquisa sobre a Saúde Mental das Famílias Atingidas pelo Rompimento da Barragem do Fundão em Mariana", realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 70% das 459 pessoas entrevistadas ao longo da bacia do Rio Doce, que contempla as cidade de Caratinga, Coronel Fabriciano, Governador Valadares, Ipatinga, Itabira, João Monlevade, Manhuaçu, Mariana, Ouro Preto, Timóteo, Ponte Nova e Viçosa, relataram sofrer de depressão ou ansiedade como consequência do desastre.
O rompimento da Barragem de Fundão afetou a saúde e a qualidade de vida dos moradores dos 45 municípios atingidos - de Mariana, Minas Gerais, até a foz do Rio Doce, em Linhares, Espírito Santo - resultando na perda, em média, de 2,39 anos de vida para cada indivíduo desses territórios. Em alguns casos extremos, essa perda pode chegar a 24,53 anos a menos de vida dependendo da situação. É o que aponta a investigação realizada pela equipe do Projeto Rio Doce com base em dados de até 2021 do DATASUS, do Ministério da Saúde. Isso porque o crime teve o vazamento de aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos, segundo o Ministério Público Federal, de rejeitos de minério de ferro e sílica, entre outros materiais particulados, levando as vítimas à exposição e ao contato com uma série de substâncias tóxicas provenientes dos rejeitos de mineração.
O rompimento contínuo
“E essa realidade que vivi naquele momento começou a me adoecer”
Em entrevista ao jornal Lampião, Marino D'Angelo Júnior, produtor rural e atingido pelo rompimento da barragem de Fundão, quando residia na região de Paracatu de Cima, relata que todo o processo subsequente ao desastre contribuiu para o agravamento de sua saúde e que, após o crime da Samarco e até hoje, enfrenta, entre diversos problemas, a diabetes e pressão alta.
Ele ressalta ainda a maneira desumana com que foram tratados pela mineradora responsável, o que intensificou seu sofrimento: "E essa realidade que eu vivi naquele momento começou a me adoecer. Só que eu nem me preocupava se eu tinha o direito a psicólogo, se eu não tinha, porque eu também não me entendia atingido, porque a minha casa não tinha sido destruída. E a forma que a Samarco e as pessoas que estavam ali para prestar o serviço, fazer a reparação, tratavam os atingidos, causava mais aborrecimento. Aí, depois de um tempo, que eu fui ver que eu estava mal.", afirma Marino.
Marino D'Angelo teve sua casa cercada pela lama, mas não era considerado um atingido. A mineradora Samarco retirou o produtor rural e sua família da região de Paracatu de Cima, mesmo não os reconhecendo como atingidos em razão da estrutura física de sua residência não ter sido comprometida ou destruída, parâmetro usado pelas mineradoras Vale e BHP, à época, para reconhecer as vítimas. Marino possuía mais 4 propriedades: duas delas foram atingidas diretamente pela lama. As demais ficaram inacessíveis devido à grande quantidade de rejeitos que as rodeava.
No início, Marino e sua família, por um desconhecimento da situação, julgamento e pressão das outras pessoas acabaram não se considerando como vítimas. Mas depois de muita luta e a união com a parcela da comunidade que passava pela mesma situação, eles reconheceram que faziam parte do grupo de atingidos e mereciam tudo que lhes era de direito.
Sobre a pressão que passava, Marino afirma que as mineradoras e a Fundação Renova pregavam e também influenciavam uma parcela das próprias pessoas atingidas a pensarem que ele e sua família não teriam direito a reparação: “Mas quem perdeu a casa embaixo falava que quem morava lá em cima não atingiu a casa, não perdeu…E aí começou esse negocio, e ficava com aquilo também, e falava, pô, minha casa não foi destruída. Se eu falar que eu perdi, eles vão falar que eu sou aproveitador. E nós começamos uma luta que conseguimos fortalecer com os excluídos”.
Até que, finalmente em janeiro de 2021, mais de 5 anos após o crime minerário, foi sancionada a Lei estadual nº 23.795, que ampliou e ressignificou o termo atingido. A partir dessa legislação, são consideradas atingidas por barragens todas as pessoas que enfrentam prejuízos, ainda que potenciais, devido aos impactos socioeconômicos decorrentes da construção, instalação, operação, ampliação, manutenção ou desativação de barragens na região.
“ Mas isso não estava em mim, eu não tinha força, não tinha! ”
Atualmente, Marino e sua família residem em Águas Claras, um distrito pertencente a Mariana. Após serem deslocados de Paracatu de Cima devido ao crime socioambiental, ele afirma que seu cotidiano mudou drasticamente: “Depois do rompimento, eu deitava no sofá aqui em casa, acordava, ia na janela, tomava café, olhava e falava, vou fazer isso, vou fazer aquilo, vou fazer aquilo outro. E, na hora que eu me assustava, estava deitado no sofá de novo (...). Eu falava, daqui a pouco, daqui a pouco. Escurecia, eu estava com o mesmo pensamento. E o pessoal começou a observar isso, entendeu? Mas isso não estava em mim, eu não tinha força, não tinha! Não sei.” Marino explica que, antes do rompimento da barragem, tinha uma vida ativa, saía de casa às 6 horas da manhã e só voltava ao entardecer. Após o ocorrido, perdeu a vontade de realizar as atividades do cotidiano que tanto apreciava.
O Acolhimento
Após o rompimento da barragem, o serviço público de Mariana mobilizou-se para atender as vítimas, elaborando planos de ação específicos para as áreas de saúde e assistência social. Nesse contexto, já em 2015 foi criado o Projeto Conviver, composto por uma equipe multidisciplinar que incluía psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e profissionais de arteterapia. O projeto, focado no atendimento primário à saúde mental dos atingidos, fez parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do município, com o objetivo de oferecer suporte psicológico e cuidados especializados às famílias impactadas pelo rompimento da Barragem de Fundão.
O produtor rural afirmou que foi somente por meio do Projeto Conviver que começou a perceber melhorias significativas em sua saúde mental. Após mais de um ano e meio com a equipe do Projeto, Marino afirma ter recebido o que precisava: “Era um espaço onde eu tinha o direito de desabafar, de chorar, de gritar, de espernear.”
Janaína Moraes, psicóloga do Conviver, ressalta que a abordagem dos profissionais tem evoluído e se adaptado ao longo dos anos. A primeira equipe foi contratada em 2015, por meio de um acordo entre a Prefeitura Municipal de Mariana e a Samarco. Nesse acordo, a mineradora responsável pelo crime socioambiental assumiu a responsabilidade financeira pelos profissionais, enquanto a execução do trabalho seguiu as diretrizes das políticas públicas do SUS.
Após a contratação, realizada diretamente pela Prefeitura de Mariana, a rede de atenção psicossocial do município reuniu-se com os profissionais para coordenar e desenvolver as primeiras etapas do projeto: “A partir dessa reunião dos profissionais e das propostas que foram sendo utilizadas, esse grupo de trabalhadores foi se formando como uma equipe, que ficou uma equipe específica para fazer o acompanhamento psicossocial”, afirma a psicóloga.
Inicialmente, os atendimentos eram realizados em espaços públicos e áreas coletivas, como salões comunitários nos bairros onde as famílias atingidas estavam residindo. No entanto, desde 2019, com a conquista do imóvel que abriga o projeto, os atendimentos passaram a ser realizados no novo local, localizado no bairro Barro Preto.
Recentemente, o Conviver passou por uma nova configuração. Os atendimentos estão sendo direcionados para os reassentamentos e/ou locais onde as famílias estão morando, como afirma Janaína: “Hoje a gente está um pouco mais disperso, não estamos com esse trabalho, que é específico da saúde mental, centralizado aqui, mas temos representantes em lugares diferentes, e aí cada lugar terá uma realidade diferente”.
Atualmente, o atendimento e o apoio à saúde mental dessa população são realizados pela Estratégia Saúde da Família (ESF), vinculada ao Programa Saúde da Família do Governo Federal. Os atendimentos ocorrem das 7h às 16h no Posto de Saúde, localizado na Rua Wenceslau Braz, nº 451. No reassentamento de Paracatu, os atendimentos são oferecidos a cada 15 dias, sempre às quintas-feiras. O próximo atendimento será no dia 26/09, das 7h às 19h. Além disso, nas terças, quartas e sextas-feiras, há atendimento no reassentamento do Novo Bento Rodrigues, das 8h às 9h.
A necessidade de apoio psicológico
Em conversa com Lidiane Rezende, psicóloga do Projeto Conviver e atualmente matriciadora de Saúde Mental no Reassentamento de Novo Bento Rodrigues, após o rompimento da barragem de Fundão, novos medos surgiram entre os atingidos. É o que ela nos conta: "tenho pacientes que até hoje falam do medo de chuva, do medo do barulho, que sonham com o rompimento da barragem."
O papel da matriciadora é garantir que os serviços de saúde mental sejam adequadamente integrados e oferecidos à comunidade em questão, coordenando a assistência e promovendo o bem-estar emocional.
“ Assim que a lama parou, é que começou o verdadeiro rompimento ”
Alguns pacientes que, na tentativa de lidar com os traumas decorrentes do desastre ambiental de 2015, continuaram tomando medicamentos até os dias de hoje, como forma de recuperar a estabilidade emocional. “Se eu ficar sem o medicamento, eu brigo comigo mesmo” afirma Marino D'Angelo.
De acordo com Jesse Catta Preta, psicólogo e Coordenador da Rede de Atenção Psicossocial de Mariana (CAPS), ao ser questionado se houve o aumento nos diagnósticos de doenças mentais após o rompimento da barragem em comparação aos anos anteriores no município, ele afirma que ocorreu aumento da busca pelos serviços de saúde mental da população como um todo, porém não há números comparativos.
André Diniz, médico especializado em Medicina de Família e Comunidade, que atende os atingidos desde fevereiro de 2018 e atualmente atua na Unidade Básica de Saúde (UBS) de Bento Rodrigues, destaca que as vítimas do crime socioambiental continuam a sofrer impactos também em sua saúde mental, como crises de ansiedade e casos depressivos, devido aos persistentes conflitos com a Fundação Renova. A UBS responsável pelo atendimento aos atingidos em Mariana está localizada na Rua Wenceslau Braz, nº 451, no Centro, ao lado do Previne.
Com o que concorda Marino D'Angelo ao afirmar que: “assim que a lama parou, é que começou o verdadeiro rompimento. Que rompeu comunidades, rompeu família, rompeu laços, rompeu tudo. E é um rompimento contínuo.” A fala do produtor rural destaca a necessidade e a importância da continuidade do acompanhamento médico e psicológico. Com a entrega dos novos reassentamentos, os profissionais atenderão tanto nas comunidades quanto na cidade de Mariana. "Nossa equipe atende três vezes por semana no Novo Bento e duas vezes na UBS da sede de Mariana," afirma Dr. André Diniz.
Para enfrentar as diversas fases do rompimento, o Projeto Conviver ajustou continuamente sua metodologia de trabalho junto aos atingidos. Além dos atendimentos em grupo, a abordagem passou a incluir atividades para integrar os aspectos do cotidiano das vítimas à nova realidade que enfrentam.
Em relação às crianças, a equipe pedagógica desenvolveu abordagens lúdicas através com brincadeiras, conforme explica a psicóloga Lidiane Rezende: “Através do brincar, conseguimos identificar onde estão os conflitos, problemas e dificuldades.” Para os adultos, as iniciativas foram projetadas para recriar aspectos do ambiente dos distritos em que viviam. Um exemplo disso é a criação de uma horta, uma atividade frequentemente mencionada durante os atendimentos e de que eles sentiam falta. Lidiane Rezende destaca que essas iniciativas são essenciais para ajudar na adaptação ao novo município.
“ Então, a gente perdeu tudo. A gente perdeu a identidade, a autonomia. A gente perdeu até o direito de ter alguma coisa “
Marino, antes do rompimento da barragem, era o maior produtor de leite da região de Paracatu de Cima, onde morava desde 1989, chegando a produzir aproximadamente 1.000 litros por dia. Além disso, realizava inseminação artificial, ajudando a economia local e garantindo renda para arcar com suas necessidades. “Depois do rompimento, isso tudo se perdeu. Eu cheguei a fechar no vermelho”, afirma o produtor.
Para conseguir arcar com os gastos e o custo de vida após o crime socioambiental, Marino D'Angelo teve que vender a maior parte de seu gado, perdendo mais um pedaço de sua história. “Então, a gente perdeu tudo. A gente perdeu a identidade, a autonomia. A gente perdeu até o direito de ter alguma coisa.” comenta Marino.
O desejo de muitos atingidos, assim como o do produtor, é retornar à rotina anterior ao rompimento da barragem. D'Angelo afirma que, apenas no início de 2023, quase oito anos após o crime, começou a retornar às suas atividades: "Mesmo assim, não chego a 60% do que eu era. Entendeu? Hoje faço alguma coisa, depois descanso um pouco, volto a fazer e assim por diante. Parece que estamos arrastando uma tora."
Além dos traumas psicológicos, os moradores das áreas atingidas ainda sofrem com problemas de saúde física também, como afirma Marino: “E até hoje ainda sou sequela disso. Depois fiquei diabético, pressão alta. E eu era uma pessoa que não tinha nada antes do rompimento.”
Os atingidos pela barragem de Fundão de Mariana estão em processos judiciais até os dias atuais contra as mineradoras Samarco, Vale e BHP em busca do reconhecimento de seus direitos e reparação de seus danos. Os processos estão caminhando de forma muito lenta, mas a população segue firme na luta por seus direitos. Marino representa dignamente a população atingida quando afirma: “dinheiro não é prioridade na minha vida, entendeu? Eu tenho muitas outras prioridades. Eu saio muito mais feliz desse processo, da forma que eu entrei, de cabeça erguida, pôr na cabeça um travesseiro, dormindo, sem minha consciência me cobrar nada”.
Atendimento Psicossocial em Mariana
Conheça as três unidades da Rede de Atenção Psicossocial de Mariana:
CAPS I: atendimento em casos de crises e urgências em saúde mental em adultos.
Rua do Aleijadinho, número 2-76, bairro Santana.
Telefone para contato: (31) 3558-2229
Atendimento: 8h às 17h, de segunda a sexta-feira
CAPSij: atendimento de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico;
R. Sen. Bawden, 61, bairro Santana.
Telefone para contato: (31) 3558-5494
Atendimento: 8h às 17h, de segunda a sexta-feira
CAPS AD: responsáveis pelo atendimento aos pacientes com sofrimento em saúde mental decorrente do uso de álcool e outras drogas.
Rua do Aleijadinho n° 437, bairro Santana.
Telefone para contato: (31) 3557-1726
Atendimento: 8h às 17h, de segunda a sexta-feira
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