“Vai ter dia que a cicatriz vai doer, mas vai ser pra te lembrar o quanto você é forte.”
- Jade Iasmin
- 28 de ago.
- 6 min de leitura
46ª edição
Ouça o Perfil na íntegra:
Essa é Rosa Aparecida Ferreira, funcionária do Museu Boulieu, que expõe a força e a dignidade dos trabalhos invisíveis.

Diversas vezes, quando entramos em uma instituição, seja ela cultural, comercial ou de lazer, dificilmente nos lembramos de quem mantém aquele local. Até mesmo em casa, nos esquecemos de quem cuida com tanto carinho de cada canto. De quem limpa os espaços compartilhados para que os momentos juntos possam acontecer, de quem mantém os banheiros limpos, de quem cozinha e lava as louças após todos comerem e até mesmo de quem tem o cuidado de passar o café para que todos possam ter um dia melhor e com mais energia.
Nascida e criada no bairro Piedade, em Ouro Preto, onde mora até hoje, Rosa Aparecida Ferreira, aos seus 47 anos de idade, presta serviços de limpeza para o Museu Boulieu desde 2022, data em que o museu abriu, revezando dia sim e dia não com a Adriana, sua colega, com quem divide o serviço. Ambas permitem, através do trabalho que realizam, que os visitantes e os demais funcionários possam estar em um ambiente limpo e agradável.

Sempre fumando o seu cigarro durante os intervalos e com um sorriso acolhedor, Rosa tem uma marca registrada no Museu Boulieu. Seu café, que tem cheirinho de casa de mãe é, com certeza, um dos melhores que eu já tomei. No museu, ela começa cedo, às 8 horas da manhã, antes mesmo do espaço abrir para visitação, às 10 horas. Sempre que está lá, prepara o café e segue para a limpeza das salas administrativas e da recepção. Durante a tarde, segue para o segundo andar e limpa o espaço onde fica a exposição permanente, sem tocar nas peças, e termina conferindo banheiros e corredores. “Na terça-feira é puxado, porque é o dia da faxina geral, mas nada que não dê pra fazer”, conta.
Além do Museu Boulieu, sempre que dá, ela também aproveita para fazer trabalhos extras na cidade de Mariana. Quando acontecem eventos no Museu de Mariana, Rosa geralmente faz parte da equipe de limpeza. Além disso, realiza a limpeza de um flat na cidade, que é alugado como airbnb. Diversas vezes, quando perguntava para ela sobre descanso, ela me dizia: “sempre que posso aproveitar, eu aproveito pra fazer um dinheirinho extra”.
Apesar do cansaço, o reconhecimento pelo seu trabalho, torna tudo mais leve. Para ela, o ambiente de trabalho no museu é tranquilo: “não posso reclamar de nada, pois trabalho com coordenadores muito compreensivos”. Seus colegas reconhecem e enxergam a excelente profissional que ela é e como é bom poder viver em sua companhia. “Trabalhar com a Rosa é sempre uma alegria. Seu bom humor e sua espontaneidade tornam o dia a dia mais leve, principalmente durante as nossas conversas nos intervalos”, afirma Matheus Duarte, assistente de comunicação do Boulieu. Além de excelente profissional, ela também é inspiração. “No convívio diário, ela revela sua força e nos inspira a sermos fortes também. Entre histórias, risadas e aprendizados, estar ao lado da Rosa é quase que um presente”, diz Matheus.
Nathália Rezende, coordenadora do setor educativo da instituição, também fala como, além de uma pessoa profissional e ética, Rosa também é uma pessoa muito carinhosa com todos. “O trabalho dela é feito de maneira impecável e torna o ambiente muito melhor de ser trabalhado”, diz. Ela ainda reconhece esse lado afetuoso da Rosa, que vai além da sua excelência no trabalho. “Rosa tem uma coisa que pode ser traduzida como carinho mesmo, de olhar e enxergar as pessoas que estão em torno dela e como ela faz isso de forma generosa, seja dando um conselho, um sorriso, enfim. A Rosa, ela tem essa generosidade genuína dela que vai para além das suas competências profissionais”.

Para além da sua vida profissional, ela também tem uma vida pessoal agitada e cheia de compromissos. O trabalho doméstico toma conta de parte da sua rotina. Mãe solo e filha dedicada, cuida de seus pais idosos e da sua filha, Helysa Cristina, que para ela é um presente divino que dá sentido à sua vida. “O dia em que ela nasceu foi a página mais linda que Deus escreveu, ela é minha força pra nunca desistir”. Quando ouço ela falando sobre a filha e sobre tudo o que faz por ela, me lembro da minha mãe, Luciene, que, assim como Rosa, também é mãe solo e sempre se desdobrou sendo uma mulher independente, para me dar tudo o que há de melhor: uma boa educação, caráter, saúde e muito amor. Helysa, assim como eu, tem a honra de ter a mãe como amiga, e Rosa, assim como a minha mãe, vê em Helysa um mundo de possibilidades boas e a esperança de que tudo para ela seja melhor.
Além de ser uma das pessoas responsáveis pelo funcionamento e a abertura do museu, Rosa ainda se dedica a ser a matriarca da casa, onde não só cuida do ambiente físico, mas também de sua família. “Já em casa é correria o tempo todo, é casa pra arrumar, roupa pra lavar, cozinhar, coisas pessoais dos meus pais pra resolver, pois já são um pouco mais de idade e não estão acostumados com a modernidade e com tudo isso”, compartilha.

Em meio a um cotidiano marcado por uma rotina cheia, onde ela reveza sua atenção e seu tempo entre os cuidados com a casa, a família e o trabalho, ainda precisa conciliar o tempo para fazer o que gosta. “Ainda tenho que tirar um tempo pra cuidar de mim”, comenta. Fã de uma boa cerveja gelada e de um pagode, sempre que pode ela aproveita o seu tempo livre com os amigos e a família. E não posso deixar de dizer que Rosa, além de ser uma mulher muito bonita, é também muito vaidosa. Além de ir frequentemente à academia e de cuidar da sua alimentação da melhor maneira possível, sempre que a vejo em lugares festivos, ela é a mais arrumada do evento e essa é uma das coisas que considero admirável nela, porque mostra o quanto ela se cuida e também se preocupa consigo mesma.
Filha de Maria Aparecida Pinto Ferreira e Agostinho Brum Ferreira, nasceu em 4 de setembro de 1977, na Santa Casa da Misericórdia de Ouro Preto e tem uma história de vida entrelaçada por percalços e “uma estranha mania de ter fé na vida”, como descreve Milton Nascimento na canção “Maria, Maria”. Assim como as mulheres escritas por Milton, ela é cheia de memórias passadas que misturam a dor e a alegria da vida. Com uma infância marcada pela violência doméstica do pai contra ela e a mãe, foram verdadeiros respiros as brincadeiras com os primos no quintal dos avós, as festas comunitárias do bairro e a casa de pau a pique dos avós maternos.
“Tive uma infância um pouco conturbada, pois vivi em um lar onde meu pai traia minha mãe com frequência e a agressão física era constante tanto na minha mãe quanto em mim, mas tirando esse episódio eu consegui viver um pouco da minha infância”, comenta. Nessas horas, foi o exemplo da mãe, dona Maria Aparecida, que lhe deu forças. “Ela me ensinou que não devemos desistir nunca e aconteça o que acontecer, siga em frente, porque no final tudo vira cicatriz”.

Apesar de trabalhar na área de limpeza atualmente, desde pequena ela quis ser professora, e conseguiu realizar esse sonho até o ano de 2014, quando, por imprevistos da vida, precisou interromper a carreira. “Mas tenho planos de voltar um dia”, garante. Formada em 1998, pela Escola Estadual Dom Velloso, foi integrante da última turma de magistério com licenciatura de ensino fundamental 1, ou seja, técnico em magistério, podendo dar aulas sem ter o ensino superior. Ao longo da carreira como professora, deu aula em diversas escolas públicas e particulares de Ouro Preto, sendo elas a E.M. Izaura Mendes, E.M. Adhalmir Santos Maia, E.M. Nossa Senhora das Graças, E.M. CAIC dos Santos, além de uma escola particular de educação infantil.
Rosa, assim como 8 em cada 10 mulheres segundo levantamento do Infojobs divulgado pelo G1, vive uma jornada dupla e, às vezes, até mesmo tripla. Ela é um retrato da mulher negra brasileira descrita por Chico Buarque, na música “Cotidiano”, onde ele diz “todo dia ela diz que é pra eu me cuidar e essas coisas que diz toda mulher, diz que está me esperando pro jantar”. Ou seja, mulheres que o tempo todo realizam trabalhos formais e informais, e ainda cuidam das pessoas amadas. Ela nos lembra que o funcionamento das máquinas, da sociedade, das instituições e até mesmo da própria casa, não depende apenas de curadores, pesquisadores ou gestores, mas também, e sobretudo, das mulheres que limpam, cozinham, cuidam e mantêm esses espaços vivos.
Dar visibilidade ao trabalho de Rosa Aparecida Ferreira é uma forma de valorizar os trabalhos invisíveis, historicamente atribuídos às mulheres negras, e de reafirmar que não há o funcionamento de qualquer ambiente sem o trabalho de quem está ali cuidando do espaço, todos os dias.









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