A importância da CABF na luta por justiça
- Danielle Leal e Milene Latarulo
- 4 de nov.
- 9 min de leitura
47º edição
Uma década após o desastre-crime da Samarco, a Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) resiste e mantém viva a luta por justiça, reparação e memória nas comunidades atingidas.

“O momento que mais me marcou foi quando eu fui preso”, relembra Marino D’Angelo, 56 anos, trabalhador do campo, que representa a Zona Rural - Paracatu de Cima, Camargos, Ponte do Gama, Borba, Pedras e Campinas - na Comissão de Atingidos e Atingidas pela Barragem de Fundão (CABF). Em 2023, em meio à luta por reparação, ele teve seu terreno em Paracatu de Cima invadido pela Renova. Ele conta que após exigir a desocupação do lugar, foi cercado pela polícia municipal. Depois de uma discussão e de não aceitar ser preso por um motivo que tinha certeza ser injusto, ele recebeu dois disparos de arma de choque nas costas. Em seguida, foi conduzido pela polícia à delegacia de Ouro Preto. Graças à mobilização coletiva, Marino foi solto no mesmo dia. “A pressão popular foi tão grande que me soltaram. A Globo, a UFMG, todo mundo se mobilizou”.

Mas sua luta não iniciou a partir deste episódio em 2023, e sim em 5 de novembro de 2015, após o rompimento da barragem da Vale e BHP (Samarco). Ao longo do rio Gualaxo do Norte, no município de Mariana, várias comunidades foram atingidas pelos rejeitos minerários, 20 pessoas foram mortas - incluindo um aborto - e um corpo não encontrado até hoje, o de Edmirson José Pereira, ex-funcionário da Samarco. O desastre-crime levou ao deslocamento forçado das pessoas atingidas pela mineração, que desde então batalham por justiça, direitos e pela reconstrução de suas comunidades e modos de vida.
Em 28 de dezembro de 2015, no Centro de Referência à Criança e ao Adolecente (CRIA), em Mariana, é dado um grande passo na luta pela reparação. Ali foi lavrada uma Ata que criou a Comissão de Atingidos e Atingidas pela Barragem de Fundão (CABF). Ela surgiu como uma organização social em prol dos interesses coletivos. Inicialmente, contava com 36 membros, sendo 13 atingidos de Bento Rodrigues, 16 de Paracatu de Cima e de Baixo e 7 da Zona Rural. Hoje conta com 12 integrantes: seis atingidos de Bento Rodrigues, dois de Paracatu de Baixo e quatro da Zona Rural.
Desde sua criação, a Comissão tem atuado em acordos judiciais, oferecendo amplo apoio às comunidades e à luta por justiça social como principal objetivo. Mônica Santos, 40, formada em Direito, integrante da CABF, conta algumas das primeiras conquistas, iniciadas já em 2015: “Conquistamos o direito a uma sede e secretárias para o escritório da comissão, ao cartão emergencial, casas alugadas antes do Natal [de 2015], a antecipação de 20 mil e o direito à assessoria técnica em 2016”. Com a Assessoria Técnica Independente, a CABF avançou ainda mais em seus pleitos, conquistando a participação em audiências públicas e a contestação do cadastramento que vinha sendo realizada de maneira precária e injusta, segundo membros da comissão.

A luta coletiva da CABF é feita, também, por histórias individuais, cada uma marcada por sacrifícios e desafios, especialmente pelo esgotamento emocional.
O novo cadastro inovou ao incluir a autodeclaração, uma cartografia social detalhada e mapas reais das propriedades atingidas, em busca de assegurar uma reparação justa às famílias e também o direito de continuarem donos de suas terras de origem. Esse novo documento de referência para a reparação foi chamado de Dossiê, e implementado pela Cáritas em conjunto com a CABF. Contava por meio de uma metodologia que previa, além da aplicação de um questionário, uma cartografia social, uma vistoria realizada à época pela Renova, além da tomada de um termo em que cada pessoa atingida era novamente ouvida pela Cáritas. Em seguida a ATI fazia a sistematização de tudo, quando o material era então revisado e concluído. Essa ferramenta foi e continua sendo muito importante para que a indenização seja feita de forma justa. O processo de cadastro foi finalizado em 2022, resultando em 1504 dossiês familiares.
Dentre os avanços mais significativos da Comissão à época estão o reassentamento familiar para os atingidos da Zona Rural, os direitos a três hectares de terra por família e ao de arrependimento sobre o local em que foram reassentados, que permitia aos atingidos a mudança de sua decisão, em até 18 meses após a reconstrução das casas, podendo optar por um novo imóvel fora da região atingida ou por receber uma indenização. A CABF conseguiu ainda a inclusão de novos critérios para o reconhecimento das pessoas como atingidos, como a presença do rejeito da Samarco na propriedade, independente dele ter destruído ou não suas casas, o isolamento comunitário e o deslocamento compulsório.
Mas a luta coletiva da Comissão é feita, também, por histórias individuais, cada uma marcada por sacrifícios e desafios, que têm levado, segundo seus integrantes, a um esgotamento emocional. Luzia Nazaré, 62, representante de Paracatu de Baixo, teve sua vida transformada pelo rompimento e pela jornada em busca de justiça. Ao se dedicar ao movimento das pessoas atingidas, ela acabou se afastando da família e amigos. Mônica também passa por situação parecida. Ela realizou na comissão o trabalho voluntário, muitas vezes árduo: “Há quase dez anos dedico a minha vida praticamente 24 horas por dia e sete dias por semana em busca da tão sonhada reparação e justiça. Hoje não tenho mais vida social, a dedicação é exclusiva para a reparação, não repetição e punição.”

Perdas acumuladas ao longo dos anos
O desgaste emocional aumenta quando a CABF enfrenta táticas de desmobilização dentro do território. Uma delas são os conflitos comunitários, provocados, segundo relatos de lideranças, pela atuação da mineração e por instituições de justiça e pela extinta Renova. Cristiano Sales, 43, motorista e representante de Bento Rodrigues, conta que a empresa se aproveita das pessoas mais vulneráveis para criar conflitos entre as pessoas atingidas para desestabilizar a sua articulação coletiva. O que, segundo ele, acaba por enfraquecer alguns vínculos entre os integrantes da comissão, no entanto, nada disso abala sua persistência: “Porque, se parar, acaba a comissão, e se acabar a comissão, acaba tudo”, conta Cristiano.
Ao longo desses dez anos, a comissão tem enfrentado também cortes em seus recursos materiais. No passado, a Comissão tinha direito a transporte, lanches, escritório e secretárias. Em 2025, após a assinatura do Governo Federal e das empresas mineradoras ao Acordo de Repactuação, eles perderam esses auxílios e se viram obrigados a mudar para uma sala cedida pela Universidade Federal de Ouro Preto. Para Cristiano, a desmobilização do escritório também foi uma tentativa de enfraquecer a atuação da organização. “Hoje, infelizmente, depois da Repactuação, nos tiraram esse espaço da forma mais covarde. Fomos praticamente despejados, sem saber para onde levaríamos nossos arquivos e como faríamos para manter nossos compromissos”, diz Mônica, reforçando essa percepção ao relembrar o impacto da mudança. Os materiais e documentos gerenciados pela CABF foram realocados no Instituto de Ciências Humanas e Sociais graças a uma parceria com a Ufop. Com o apoio da Cáritas MG, as reuniões da Comissão agora são realizadas no escritório da ATI.
Para os atingidos, a luta ainda vai longe e por isso é preciso ter força. Mauro Silva, 56, representante de Bento Rodrigues, denuncia que a busca constante pela reparação justa trouxe retaliação para os integrantes mais atuantes da CABF. Ele fundamenta isso com os atrasos nas obras desses integrantes e de seus familiares nos reassentamentos. No novo Bento é possível constatar isso, através das casas de seu pai e da mãe de Mônica, recém entregues de agosto para cá. Já as entregas de Mauro, Marquinhos e da tia de Mônica ainda não foram feitas. Mauro Reclama ainda da falta de isonomia no processo de reparação e conta que alguns deles estão sendo processados pela Samarco que, segundo ele, continua usando de seu poder decisório para retaliá-los. Mesmo assim, ele também diz que a Comissão se tornou parte de sua vida: “Eu acredito que enquanto houver um atingido sem ser reparado devidamente, a proposta minha é continuar na luta.”
Outro baque sofrido pela Comissão foi a primeira interrupção ocorrida das atividades da Cáritas, em 29 de maio de 2025, em razão da demora para liberação dos recursos previstos pela Repactuação. Para a CABF, foi um desafio se manter sem a assessoria, mesmo que por alguns meses. Somente em 12 de junho um novo contrato temporário restabeleceu novamente a Cáritas em Mariana, iniciando os trabalhos em setembro.

Ao longo desses dez anos, a comissão tem enfrentado também cortes em seus recursos materiais. No passado, a Comissão tinha direito a transporte, lanches para as reuniões coletivas, escritório e secretárias. No início de 2025, alguns meses após a assinatura, pelo Governo Federal, instituições de justiça e empresas mineradoras, do Acordo de Repactuação, eles perderam esses auxílios e se viram obrigados a mudar para uma sala cedida pela Universidade Federal de Ouro Preto. Para Cristiano, a desmobilização do escritório também foi uma tentativa de enfraquecer a atuação da organização. “Hoje, infelizmente, depois da Repactuação, nos tiraram esse espaço da forma mais covarde. Fomos praticamente despejados, sem saber para onde levaríamos nossos arquivos e como faríamos para manter nossos compromissos”, diz Mônica, reforçando essa percepção ao relembrar o impacto da mudança. Os materiais e documentos gerenciados pela CABF foram realocados no Instituto de Ciências Humanas e Sociais graças a uma parceria com a Ufop. Com o apoio da Cáritas MG, as reuniões da Comissão agora são realizadas no escritório da ATI.
Para os atingidos, a luta ainda vai longe e por isso é preciso ter força. Mauro Silva, 56, representante de Bento Rodrigues, denuncia que a busca constante pela reparação justa trouxe retaliação para os integrantes mais atuantes da CABF. Ele fundamenta isso com os atrasos nas obras desses integrantes e de seus familiares nos reassentamentos. No novo Bento é possível constatar o fato, através das casas de seu pai e da mãe de Mônica, recém entregues de agosto para cá. Já as entregas de Mauro, Marquinhos e da tia de Mônica ainda não foram feitas. Mauro reclama ainda da falta de isonomia no processo de reparação, que o tratamento dado aos integrantes da Comissão é diferente e muitas carregado de empecilhos burocráticos. E que, como se não bastasse esse tipo de situação, alguns deles estão sendo processados pela Samarco que, segundo ele, continua usando de seu poder decisório para retaliá-los. Mesmo assim, ele também diz que a Comissão se tornou parte de sua vida: “Eu acredito que enquanto houver um atingido sem ser reparado devidamente, a proposta minha é continuar na luta.”

Outro baque sofrido pela Comissão foi a primeira interrupção ocorrida das atividades da Cáritas, em 29 de maio de 2025, em razão da demora para liberação dos recursos previstos pela Repactuação. Para a CABF, foi um desafio se manter sem a assessoria, mesmo que por alguns meses. Somente em 12 de junho um novo contrato temporário restabeleceu novamente a Cáritas em Mariana, iniciando os trabalhos em setembro.
Quando o recomeço não cabe no novo endereço
A entrega dos reassentamentos, além de precária e incompleta, traz incertezas para o presente e o futuro. Rodrigo Vieira, coordenador do projeto de pesquisa técnica da Cáritas de Mariana, explica que “no Novo Paracatu, as famílias rurais foram realocadas para áreas urbanas e perderam a renda que vinha da agricultura e da criação de animais. [...] As famílias não têm de onde tirar renda”. Quem é da Zona Rural sofre ainda com uma outra realidade, o esquecimento das empresas, dos órgãos públicos e da mídia, que não os reconhece como atingidos, dificultando o acesso à reparação.

Segundo Cristiano, a mídia se interessa pelo dinheiro e as empresas têm muito mais poder financeiro do que eles. “Para divulgar alguma informação, precisa de dinheiro. As grandes mídias acabam do lado delas. Mas a gente também tem muitos parceiros, como o Jornal A Sirene e o próprio Lampião, que está fazendo essa matéria.”
A luta da Comissão tem sido também pela história e a identidade de comunidades que seguem resistindo às marcas deixadas pela mineração. Considerados territórios sagrados, os locais devastados pelo crime guardam memórias dos modos de vida, tradições e laços que o tempo e o crime não conseguiram apagar. A preservação dessa memória também é um ato de resistência, a CABF é um ato coletivo para manter viva a cultura e reafirmar o pertencimento de quem ainda luta para existir onde quase tudo foi devastado.










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