Nem chão, nem céu
- Gabriely Lemos
- 11 de jul.
- 5 min de leitura
Atualizado: há 14 horas
46ª edição
Ouça a crônica na íntegra:
A estrada até Bento Rodrigues já não leva ao mesmo lugar. Segue sinuosa entre vales, mas é como se conduzisse para dentro de um silêncio denso, pastoso, que cobre tudo. Um silêncio de lama. A placa da entrada ainda resiste, torta, manchada, como um epitáfio do território que foi.
Bento não morreu de velho. Foi tragado. Soterrado por um estouro que não veio do céu, mas do ventre da terra rasgada. Desde então, quem restou carrega um luto que não se acaba no choro, nem na missa de sétimo dia. É carregado nos ombros e arrastado no sotaque que sobrevive, na memória em pedaços de uma vida suspensa.
Mas há um luto ainda mais fundo. Um que não cabe nos olhos, nem nos tribunais. É o luto de não poder voltar para rezar com os mortos.
As barreiras para a realização de rituais fúnebres se somam às múltiplas camadas de violência causadas pelo rompimento. No lugar onde antes havia um cemitério voltado para o nascer do sol, com uma velha cruz de madeira marcando a entrada, hoje há uma cerca, há crachás, há ordens de segurança.
Há medo. Há interdito.
A terra onde repousavam os avós, os filhos, os maridos — agora é risco. Zona vermelha. Área de controle.
“Nem os mortos escaparam”, sussurra dona Iria, sentada à sombra da varanda no novo Bento, reassentamento onde vive desde 2023. Ela ajeita o terço na mão como se fosse escudo. “A gente ficou sem chão e sem céu.”
Dona Iria contempla o novo Bento com um olhar que mistura espanto e melancolia. Onde antes havia o chão de terra batida e a simplicidade da roça, hoje se erguem casas imponentes. As ruas pavimentadas carregam o brilho de um luxo inesperado.
Mas o que dona Iria sempre quis foi muito diferente: a vida tranquila no quintal florido, o pé de pimenta que ela cuidava com carinho, o som dos animais que eram sua companhia. E, sobretudo, a possibilidade de caminhar até o túmulo do pai, para afogar na saudade o aperto do coração e manter viva a sua memória.
Bento, para quem nasceu ali, não era apenas um ponto no mapa: era chão sagrado. Terra de batismos, casamentos, enterros, promessas e procissões. Cada rua de terra guardava passos de avós e vozes de infância. Dona Iria costuma dizer que “Bento era como um oratório a céu aberto”. E não há exagero em sua lembrança.
O território original não era só geografia: era altar. Ali se enterravam os mortos e se celebrava a vida. Ali o tempo tinha cheiro de café passado em cozinha antiga. Tinha o silêncio das manhãs de domingo.
Perder Bento não foi só perder uma casa. Foi perder o centro de um mundo. E agora, com o território ameaçado de desaparecer, é como se a espiritualidade do lugar estivesse também por um fio.
Ainda hoje, mesmo longe, dona Iria repete o seu maior desejo: “Quero ser enterrada em Bento de origem. Se não posso viver lá, que ao menos me deixem voltar quando eu morrer.”
As famílias foram deslocadas. As casas, prometidas. As promessas, adiadas. E os mortos? Os mortos ficaram.
O cemitério ao lado da Capela das Mercês foi uma das poucas construções que resistiram à lama. O acesso é restrito, com horários e condições específicas para a entrada de moradores e visitantes.
Mas as lembranças não respeitam interdições.
Todos os anos, no Dia de Finados, dona Iria volta. É burocracia demais para quem só quer deixar uma flor. O mato cobre os túmulos como se tentasse protegê-los do esquecimento. Mas o esquecimento não mora aqui. Mora na lama, nos relatórios, na frieza dos processos judiciais que ainda não chegaram ao fim.
Missas continuam a ser celebradas na Capela das Mercês, agora cercada por um tempo ferido, mas ainda sagrado. Ao lado, o cemitério que restou acolhe novas partidas com o mesmo respeito de sempre. A cada rito repetido, reafirma-se que enquanto houver fé e gesto, a tradição não morre. Ali, a memória não se curva diante da cerca — floresce ao redor dela.
Quase dez anos.
Quase uma década inteira desde o dia em que o chão se abriu e engoliu um povoado. Desde o minuto exato em que o tempo estancou em Bento, tudo passou a ser “antes” ou “depois” da lama. Quase dez anos em que os vivos foram arrancados das raízes e os mortos deixados para trás.
Não há como medir o tempo com calendário quando se vive em suspensão. Para quem perdeu casa, quintal, retrato na parede e nome na caixa de correio, o tempo não passa: ele pesa. E pesa ainda mais quando o luto não encontra lugar para se ajoelhar.
Visitar um túmulo é, para muitos, um gesto simples. Para os atingidos, virou luxo e luta. Há quase dez anos, um exílio amargo separa o povo do chão de seus mortos. Quase uma década de orações feitas do lado de fora, de velas acesas no concreto alheio, de conversas murmuradas com lápides invisíveis.
Nem chão, nem céu.
Quando a terra de origem se torna ameaça e o cemitério vira zona de risco, o luto não encontra onde pousar. Fica pairando. Também denso, pastoso, cobrindo tudo.
Ainda hoje, há quem carregue nas mãos o mesmo buquê de flores secas que queria ter deixado sobre a sepultura da mãe. Há quem guarde o nome dos filhos na boca por não poder sussurrá-los diante da cruz.
Quase dez anos se passaram. E para muitos, nada passou.
Enquanto esperavam por justiça, muitos morreram sem voltar para casa. Pelo menos 55 atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão que cobriu Bento Rodrigues já faleceram à espera da reconstrução de suas moradias nos reassentamentos. Vidas encerradas em abrigos provisórios, em casas emprestadas, em territórios que não escolheram.
Morreram sem o direito de ver reerguido o que lhes foi tirado. Sem voltar ao chão de origem, sem enterrar os próprios pés na terra natal. E, assim, o que já era ausência se aprofundou em ausência dobrada: perderam a casa, perderam o tempo, perderam até o direito de retornar.
Dizem que a lama secou. Mas sob ela ainda repousa o peso do que não pôde florescer e nem encontrar descanso.
Na cidade, os sinos ainda dobram, mas há notas falsas no badalar. As romarias agora são memórias. Os cortejos, fantasmas. Bento é um lugar sem corpo, mas com alma. Alma de gente que resistiu, que ainda chama pelo nome as pedras, os rios, os mortos.
E enquanto a terra treme — não por terremotos, mas por máquinas e sondas —, o povo espera. Não mais pelo que foi perdido, mas também pelo direito de lembrar.
Afinal, o que é um povo sem os seus mortos? É um povo à deriva, remando no mar do esquecimento, tentando manter viva a memória.
Talvez um dia possam retornar ao território santo e reconstruir os túmulos, mesmo que só com pedra e palavra. Até lá, resta o altar improvisado no canto da sala, o retrato em preto e branco na moldura lascada, a vela acesa sobre o aparador.
Resta o gesto simples e desesperado de quem, privado do chão onde chora, aprende a chorar com os olhos no céu. Pois há perdas que não se enterram. Permanecem abertas, como cicatrizes que não se deixam fechar.

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