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Um ponto por vez: histórias de mulheres que recomeçam através da Oficina de Corte & Costura

  • Thácila Vasconcelos
  • 16 de jul.
  • 9 min de leitura

Atualizado: há 14 horas

46ª edição


Ouça o perfil na íntegra:


Com oito anos de atuação, o projeto da Secretaria de Assistência Social oferece capacitação profissional gratuita em Mariana.


Essa imagem mostra uma pessoa costurando um tecido branco com a ajuda de uma máquina. O foco está nas mãos, que foram mantidas coloridas, enquanto o restante da foto está em preto e branco, um efeito usado para destacar o trabalho manual.
Trabalhadora manuseia tecido em máquina de costura industrial, destacando a precisão e habilidade envolvidas na produção têxtil. | Foto: Thácila Vasconcelos

Sempre tive um olhar atento, talvez seja isso que me levou à Oficina de Corte & Costura, em Mariana. De luto, precisava sugerir uma pauta para o Varal do Lampião, mas confesso que não tinha cabeça pra nada. Mesmo assim, um lugar veio à mente: a Travessa JK, aquele bequinho no centro da cidade por onde passamos indo ao supermercado Farid. 


Ali funcionam duas oficinas do projeto Inclusão Produtiva. Me bateu uma ansiedade só de imaginar como seria o processo. Será que daria conta de entrevistar alguém? Mesmo assim, fui até o Salão e Barbearia Escola, onde fui recebida com carinho pela coordenadora e professora Michele. O espaço, naquele momento, não estava em funcionamento. Então ela me levou até a Oficina de Corte & Costura, que fica ao lado. Lá, fui acolhida com um abraço pela Coordenadora Martinha — um gesto simples, mas que me trouxe calma. 


A ideia inicial era conversar com ex-alunas dos dois projetos, mas logo percebi que queria seguir apenas com a costura. No mesmo dia, conheci Claudiane, que topou falar comigo sem pensar duas vezes — o que, pelas minhas experiências de produção, é raro. 


Martinha foi essencial em todo o processo, ajudando nas conexões com as ex-alunas, explicando o objetivo do trabalho e me deixando mais segura. Foi assim que cheguei até a Paula. Conversamos por mensagens, e aos poucos fui entendendo que não se tratava apenas de produzir um trabalho para a faculdade, mas de dar voz a histórias marcadas por luta, dificuldades, fé e transformações. 


O curso já capacitou cerca de 200 mulheres em situação de vulnerabilidade social e econômica, e oferece aulas práticas de costura básica, modelagem e silk screen. Mas para além dos números, estão as vidas que se costuram em silêncio, histórias de recomeço, como a de Claudiane e Paula, que você confere a seguir. 


Claudiane Alves Silva Bezerra 


Claudiane tem 28 anos, nasceu em Mariana e mora no bairro Santa Rita de Cássia. Mãe de duas meninas, hoje ela cursa técnico em enfermagem, mas carrega consigo uma marca que nunca vai se desfazer: a costura. 


A imagem mostra uma mulher negra, sorrindo em frente à fachada da Oficina de Corte & Costura. Ela veste camiseta rosa com o nome do projeto estampando.
Claudiane sorri em frente à fachada da Oficina de Corte & Costura. | Foto: Thácila Vasconcelos

Desde cedo, Claudiane aprendeu o que era responsabilidade. Aos nove anos, já cuidava de casa, dos irmãos e vendia picolé nas ruas. “Minha mãe bebia muito, saía muito. Ela dizia que quando a gente virasse mocinha, tinha que trabalhar. Com 11 anos, falei pra ela que só faltava o marido, porque o resto eu já fazia. Aí ela falou: ‘Então arruma um e sai de casa’. E eu fui.”


Aos 14 anos engravidou, aos 15 se tornou mãe. Desde muito jovem, enfrentou batalhas diárias pela sobrevivência. Trabalhou em fábrica, em bares e como autônoma. “Minha mãe me ensinou a não ter medo de trabalhar. Isso eu agradeço. Mas poderia ter sido de uma forma mais leve.”


Foi em 2018 que a trajetória de Claudiane começou a mudar. Ela entrou para o programa de Inclusão Produtiva da Prefeitura de Mariana e, por meio dele, conheceu a Oficina Corte de Costura. “Eu entrei só pensando em comer. Não pensava em melhorar de vida. Era o básico do básico. Minha casa nem era pintada.”


Mulher negra, aparece sentada à máquina de costura, concentrada na confecção de um casaco de pelúcia branco. Ela usa camiseta rosa e está dentro da Oficina de Corte & Costura, com tecidos e materiais da cor marrom ao redor.
Claudiane costura um casaco de pelúcia na Oficina de Corte & Costura. | Foto: Thácila Vasconcelos

A marianense já tinha noção de produção, adquirida na antiga fábrica Trevo, mas era algo superficial. “Sabia o que era uma bobina, onde passava a linha. Mas costurar mesmo, não sabia.” Foi dentro da oficina, com a coordenadora Martinha, que ela aprendeu de verdade, não só a costurar, mas a olhar para si com outros olhos.



“Martinha é minha segunda mãe. Ela teve paciência quando ninguém mais teve. Me ensinou desde fazer uma bainha até modelar. Eu era ignorante, barraqueira, sem educação. Xingava, chorava, gritava. E ela ali, com toda calma do mundo. Ela me transformou como pessoa.”


Na imagem, Claudiane e Martinha estão abraçadas e sorrindo. As duas vestem blusas rosa claro com o nome do projeto. Claudiane, mulher negra de cabelos longos, está à esquerda. Martinha, mulher branca de cabelos escuros e óculos, está à direita. Elas estão em frente a uma parede azul clara com uma porta branca ao lado.
Claudiane e Martinha, coordenadora do curso, se abraçam com afeto em frente à Oficina de Corte & Costura. | Foto: Thácila Vasconcelos

A transformação foi de dentro para fora. Claudiane retomou os estudos por incentivo da coordenadora. Quando entrou na oficina, ainda não havia concluído a quarta série. Fez o EJA (Educação de Jovens e Adultos), concluiu o ensino fundamental e o médio. Hoje está matriculada em um curso técnico de enfermagem.


Com o tempo, ela passou a auxiliar a professora. Percebeu que outras alunas precisam do mesmo apoio que ela um dia recebeu, e se ofereceu para ajudar. Martinha logo reconheceu nela o cuidado, a didática e a paciência. “Ela viu que eu tinha o mesmo jeito dela de ensinar. Aí me convidou pra ficar.”


Durante a pandemia, a costura se tornou essencial. Claudiane usou o que aprendeu para fazer acessórios de cabelo e máscaras, vendendo em pacotinhos.


Agora, Claudiane começa um novo ciclo em sua vida. Se afastando da oficina depois de 7 anos para cuidar da filha mais nova — que perdeu o pai recentemente —, ela garante: “Não vou costurar profissionalmente, mas não vou parar. A costura costurou a minha trajetória.”


Na imagem, Claudiane aparece da cintura para baixo, de pé ao lado de uma máquina de costura industrial. Ela veste blusa rosa claro com o logo da Oficina de Corte & Costura e calça jeans. Sobre a mesa há um tecido azul dobrado e linha. O ambiente é uma sala de aula com outras máquinas ao fundo.
Com as mãos firmes na mesa de costura, Claudiane se prepara para mais um trabalho na oficina. | Foto: Thácila Vasconcelos

Antes de encerrar nossa conversa, pedi a Claudiane que deixasse um recado sincero para outras mulheres que pensam em entrar para a Oficina de Corte & Costura: “Venham de cabeça aberta. Aqui tem tudo: máquina, material, apoio, gente disposta a te ensinar. Mas é você quem precisa querer. Se entrar só por entrar, vai passar e não vai aproveitar nada. Agora, se vier com vontade de aprender, com o coração aberto, você vai sair daqui transformada. Vai sair outra pessoa, melhor do que entrou.”


Ana Paula da Cruz Braga


Aos 41 anos, Paula criou e administra o Ateliê de Costuras e Estamparias Paula Braga, localizado na Galeria da Sé, em Mariana. Mas sua trajetória começou bem antes, longe da máquina de costura, entre caminhos marcados pela fé, coragem e desafios enfrentados na infância. 


Na imagem, Paula, mulher branca de cabelos loiros e lisos, está sorrindo atrás de um balcão de recepção. Ela veste blazer branco e camiseta preta. À sua frente, sobre o balcão, há uma Bíblia aberta e outro livro ao lado. Ao fundo, peças de roupas coloridas estão penduradas em cabides, além de certificados e quadros decorando a parede.
Paula recebe com simpatia os clientes no balcão de atendimento de sua loja em Mariana. | Foto: Thácila Vasconcelos

Nascida em Juiz de Fora, Paula viveu seus primeiros anos em Brás Pires, em Minas Gerais, na casa dos avós maternos. Sua mãe, que a criou sozinha, engravidou quando trabalhava no Rio de Janeiro, e por pouco Paula não foi entregue à adoção. “Ela chegou a ir para uma casa de apoio para gestantes, mas não a aceitaram de início porque estava com uma micose no braço. Depois, aceitaram faltando poucos dias pra eu nascer”, conta.


Sua mãe se casou mais tarde e se mudou para a zona rural de Guanhães,também em Minas Gerais, onde viveu por sete anos. Foi ali, ainda criança, que Paula teve seu primeiro contato com uma máquina de costura. “Trabalhava na casa dos patrões do meu pai, com 12 anos, em troca de lugar pra estudar. Tinha umas máquinas lá e a dona dizia: ‘Nem chega perto, se quebrar, seu pai vai ter que trabalhar a vida toda pra pagar’. Eu olhava de longe, admirando.”


Em 1998, com promessas de mais oportunidades, a família se mudou para Mariana. Mãe aos 15 anos, precisou trabalhar cedo para sustentar o filho e ajudar a família, que enfrentava dificuldades financeiras.


Paula trabalhou como empregada doméstica por um tempo, mas aos 18 anos teve a oportunidade de trabalhar com confecção de roupas em uma fábrica, onde descobriu a costura, não só como ofício, mas como dom.“Comecei com 18 anos a costurar mesmo pela necessidade de ajudar em casa, de sustentar um filho que já tinha quase 3 anos. [...] A costura apareceu como oportunidade melhor do que o trabalho doméstico. E ali eu descobri que tinha dom pra isso.”


Paula ficou cerca de cinco anos na confecção até decidir mudar de ramo: abriu um bar. Mesmo com o novo negócio manteve uma máquina de costura em casa, produzindo peças por gosto e complementando a renda. Em 2011, comprou suas primeiras máquinas profissionais. Mal sabia que aquele investimento mudaria tudo.


O destino, porém, a colocou diante de uma tragédia. Depois de investir todas as economias no bar, um deslizamento de terra soterrou tudo — exceto as máquinas de costura, salvas por um milagre, como ela mesmo define.“Fiquei desesperada, dois filhos para criar e tudo debaixo de terra. Mas por milagre, as únicas coisas que não foram afetadas foram as máquinas.”


Sem chão e endividada, Paula tentou outros empregos, mas logo percebeu que deveria continuar com o que sabia fazer de melhor. O reencontro com sua fé foi o que a ajudou a reorganizar a sua vida e ter forças para continuar, mesmo psicologicamente abalada.


Foi nesse momento de dificuldade que seu caminho se cruzou com o da Oficina de Corte & Costura. Mesmo com a experiência prática, ela buscava aprimoramento técnico, pois nunca havia feito um curso e sentia que isso era um obstáculo para o sonho de abrir seu próprio ateliê. “O curso me deu segurança. Aprendi técnicas que facilitaram muito minha vida.”


Mas a oficina foi além da técnica. Para Paula, foi também um local de acolhimento e troca. Um espaço onde não apenas aprendeu a costurar melhor, mas também fez amizades, compartilhou experiências e se sentiu valorizada. “Eu gosto de gente. E lá a gente conversava muito, trocava ideia com outras mulheres que também tinham seus desafios. Era muito bom dividir isso.”


Ao final do curso, em 2018, ela confeccionou um vestido para usar no dia da entrega do certificado, uma peça que guarda até hoje como símbolo de conquista.


Paula na época era dependente de vários programas sociais do governo, incluindo Bolsa Família, Aluguel Social e Cesta Básica, e se recorda com detalhes do dia em que foi ao CRAS abrir mão do benefício. “Eu cheguei no CRAS e falei com a assistente social: ‘Vim aqui abrir mão da cesta porque agora consigo ir no mercado e fazer uma compra pra mim e meus filhos’. Foi maravilhoso.”


Com o tempo, Paula foi ganhando estrutura. Um ano depois, recebeu da prefeitura um apartamento cedido em regime de comodato — um tipo de empréstimo temporário, sem custos. A segurança dessa moradia a motivou a abrir sua loja física.


Começou em uma sala pequena, dentro da Galeria da Sé, e aos poucos foi crescendo. Mudou para um espaço maior, mais adequado à produção. Com a loja já estabilizada, devolveu o imóvel à prefeitura e passou a pagar aluguel por conta própria.


Na imagem, vemos o interior da Oficina de Corte & Costura. Em primeiro plano, uma mulher de costas, com cabelo preso e óculos, opera uma máquina de costura industrial. Há várias máquinas e linhas coloridas ao redor, e outras pessoas trabalhando ao fundo. Na parede, um quadro de planejamento mensal e armários brancos completam o ambiente.
Produção em andamento: colaboradoras operam máquinas industriais de costura no ateliê. | Foto: Thácila Vasconcelos

No ateliê, localizado na maior sala, no final da galeria, Paula produz uniformes escolares, empresariais e esportivos. Trabalha com sublimação, terceiriza bordados, lida com fornecedores, atende clientes. Além disso, busca sempre participar de palestras sobre empreendedorismo feminino, e deseja voltar a estudar. Ela chegou a se matricular no curso de Administração na Unopar, mas não conseguiu seguir por conta da pandemia. “Ainda vou fazer algo voltado pra essa área”, afirma.


A imagem mostra três quadros expostos sobre uma prateleira branca, acima de um cabideiro com roupas coloridas. Os documentos apresentam títulos, selos e logotipos, sugerindo prêmios e certificações relacionados ao ateliê de Paula Braga. A cena transmite a valorização e o orgulho por conquistas construídas ao longo do tempo.
Paula Braga exibe com orgulho os certificados e prêmios conquistados pelo seu ateliê de costura. | Foto: Thácila Vasconcelos

Hoje, ela emprega outras costureiras em regime CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e seus dois filhos, movimentando a economia local. E quando perguntada sobre o que diria a outras mulheres com sonhos e dificuldades, ela responde sem hesitar: “Tenha fé. Acredite. O tempo vai passar de qualquer jeito, caminhando ou não. Então é melhor seguir, nem que seja com passos lentos.”


Na imagem, Paula Braga está ao centro, sorrindo, acompanhada de seus dois filhos, uma jovem à esquerda e um jovem à direita. Eles posam em frente a prateleiras com camisetas e peças de roupa expostas. Paula usa blazer branco e camiseta preta; a filha veste blazer preto, blusa preta e calça jeans; o filho veste uma jaqueta preta.
Paula ao lado dos filhos, que também atuam no ateliê e compartilham com ela histórias dessa trajetória. | Foto: Thácila Vasconcelos

Inclusão que transforma


Casos como o de Claudiane e de Paula ilustram o potencial de programas de capacitação e geração de renda para transformar realidades marcadas por vulnerabilidades. Mais do que ensinar um ofício, iniciativas como a Oficina de Corte & Costura proporcionam autonomia e novas perspectivas de vida.


Um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV), em parceria com a Universidade Federal do Paraná e outras instituições como o Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), mostra que 64% dos filhos de beneficiários do Bolsa Família entre 2005 e 2019 deixaram de depender de assistência pública ao chegarem à vida adulta. Esse dado revela uma importante quebra no ciclo da pobreza e reforça o papel da qualificação e da autonomia como caminhos para a emancipação social.



Assim como Claudiane, que por muitos anos dependeu do programa Renda, e Paula que saiu do Bolsa Família para abrir seu próprio ateliê, milhares de mulheres no país encontram em políticas públicas de inclusão um novo ponto de partida.

Situação atual e próximas etapas

Segundo o subsecretário de Assistência Social de Mariana, Cristóvão Gonzaga, a Oficina de Corte & Costura deve retomar suas atividades em agosto. A interrupção das aulas ocorreu devido a infiltrações no teto do espaço, e uma reforma já está sendo planejada junto ao proprietário do imóvel.


A oficina integra o Programa de Inclusão Produtiva da Secretaria, que engloba três frentes: Mariana Delas, voltado para mulheres; Inclusão Produtiva da Pessoa com Deficiência; e Ativa Idade, para pessoas idosas. Segundo Cristóvão, o Mariana Delas passou por reformulação recente, e com isso, novas ações e cursos devem ser incorporados ainda este ano.


Atualmente, os produtos confeccionados na oficina, como agasalhos, blusas e outros itens, são destinados aos programas sociais da prefeitura, como CRAS, CREAS e CRIA.

Além disso, a Secretaria de Assistência Social estuda formas de ampliar a carga horária da oficina e incluir capacitações mais aprofundadas na área da costura, com o objetivo de impulsionar a qualificação profissional. “A ideia é que elas saiam com um ofício mais completo”, afirmou o subsecretário.


Como participar


A oficina é gratuita e voltada para moradoras de Mariana, especialmente aquelas cadastradas no CadÚnico. Para participar, é necessário procurar uma unidade do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da cidade, levando RG, CPF, comprovante de residência e o número do NIS.


Confira os endereços:


  • CRAS Centro – Rua Wenceslau Braz, 781 – Centro

  • CRAS Cabanas – R. Barro Branco, 141 – Santa Rita de Cássia



As vagas são limitadas, com turmas abertas periodicamente ao longo do ano. A previsão é de que novas turmas comecem ainda em agosto de 2025.

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