A urgência em espera
- Cecília Caetano
- 25 de ago.
- 5 min de leitura
46ª edição
Ouça o perfil na íntegra:

Era uma tarde quente em pleno inverno marianense. O céu já pensava em escurecer e eu estava ali, no famoso “redondo” do ICHS (Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFOP), um espaço social do campus onde os alunos costumam se encontrar para conversar, fumar, estudar e ler.
Cheguei às 17 horas para entrevistar Marianna, uma aluna do curso de Letras. Dois minutos depois ela apareceu carregando um sorriso que, de tão especial, chegou antes que ela. Marianna atravessou o campus trazendo em suas mãos uma pasta rosa que contrastava com a blusa de lã azul que vestia. O clima já estava esfriando. Desde o início já me senti à vontade com sua presença pois, junto com o sorriso, ela me deu um caloroso abraço. Sentamos, começamos a conversar e pedi permissão para gravar a nossa conversa.
Marianna Ribeiro tem 42 anos, é casada e natural de São Paulo. Formada em Letras Português pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e com mestrado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa, em 2016 se mudou para Ouro Preto e iniciou sua trajetória como professora designada na rede estadual. Em 2022 veio para Mariana, onde começou o curso de Letras Inglês na UFOP, consolidando a sua permanência na cidade. Tudo corria bem até que, em outubro do ano passado, Marianna passou a ter sua vida marcada por fortes dores físicas, sempre acompanhadas de queimação, enjôo e muito desconforto. Apesar de tomar corretamente os medicamentos prescritos, não via as dores desaparecem.
Ela estava em seu local de trabalho quando teve a primeira crise. Mal conseguia ficar de pé e pensou: “tem alguma coisa errada, pois estava tomando omeprazol praticamente todos os dias e nada!”. Ao ser atendida na policlínica de Mariana, o médico apalpou uma região no lado direito do tórax e isso foi suficiente para Marianna soltar um grito de dor. Assim veio o pré-diagnóstico: pedra na vesícula. Mas, para confirmar, seria necessário um exame de ultrassom que, pelo SUS, teria uma espera de três meses ou mais. Aflita para começar o tratamento adequado, Marianna partiu para uma clínica particular e… Bingo! O diagnóstico confirmou o que a dor já gritava: duas pedras na vesícula. Eram essas pequenas pedrinhas que estavam tirando a paz de Marianna.
Após o exame, veio a consulta com um médico do Centro de Especialidades. E veio o laudo com um pedido de cirurgia. E veio o encaminhamento para uma fila de espera para retirada das pedras na vesícula. E vieram os inúmeros atestados médicos. Tudo isso pelo SUS, o Serviço Único de Saúde, afinal, pagar do próprio bolso não é uma opção, ou melhor, uma condição.
Marianna, agora na fila da cirurgia, não sabia quando seria realizada. Pior, sequer sabia se a fila estava andando. A única certeza é que as dores estavam paradas, estagnadas, presas no seu tórax o tempo todo. Era como um lembrete de que algo está ali incomodando, passando da hora de ser retirado, de ser eliminado. A dor não cansava de ser lembrada.
Além da tortura que é a espera de mais de 10 meses com uma dor insuportável, Marianna desenvolveu prisão de ventre, passou a expelir sangue pelas fezes, perdeu peso, ficou anêmica e começou a sofrer com problemas emocionais. Para piorar o que já estava pra lá de ruim, ainda corre o risco da pedra entupir o canal do pâncreas causando uma pancreatite. É uma pilha de problemas que não para de crescer, pois “toda vez que eu tenho crise, eles fazem exame para ver se não houve nenhuma complicação a mais”, lamenta ela.
Preferem fazer exames do que já colocarem ela logo na maca de cirurgia. Ela foi até o órgão da Secretaria de Saúde responsável pelos atendimentos domiciliares e agendamentos de exames e cirurgias: “Pelo amor de Deus, moço! Olha, me ajuda aí, porque o trem aqui não tá fácil”. Mas a saga continua.
Tem um programa da Prefeitura que promete acabar com a fila de espera por cirurgias. No papel, são 97 nomes que serão contemplados com a cirurgia de vesícula e Marianna está lá, mas continua à deriva. “Perguntei: ‘Existe previsão?’. Responderam: ‘Não, mas vamos te manter informada’. Nunca ligaram”. Por essas e outras, Marianna já carrega até um apelido entre os agentes do SUS de Mariana: “a Moça da Vesícula”, um título que mistura ironia e dor, símbolo da espera que se prolonga sem resposta.
A vida de Marianna virou uma bagunça: “Planejar a vida mesmo tá difícil. Até a rotina do meu marido fica comprometida. Estamos vivendo sempre sob estado de alerta”. Pelo SUS, a cirurgia segue sem horizonte. Pelo particular, custaria mais de dez mil reais, um valor inalcançável. O IPSEMG, plano de saúde dos servidores do Estado, também não oferece saída: “Está cobrando cerca de trezentos reais, com aquela regra de esperar seis meses para usar. Eu tinha a adesão, mas tirei, porque ficava pesado demais, já que desconta direto no salário.”
Nesse intervalo de promessas vazias e contas difíceis de pagar, a UPA 24h tornou-se parte de sua rotina. Marianna vai ao menos uma vez por semana; em semanas mais sofridas, chega a ir três vezes. Ali já recebeu uma pulseira laranja depois de desmaiar de dor. Ali já sentiu a morfina sendo aplicada nas veias. Por um instante um alívio breve. Mas, até que depois ela retome o seu lugar.
As informações não são claras para o critério de seleção para a chamada da cirurgia. Podem ligar amanhã, semana que vem, mês que vem. Enquanto isso, Marianna espera. Sua vesícula espera. Mas, a dor não espera. A ansiedade cresce, afetando não somente o seu físico, mas o seu emocional, a rotina de casa, de trabalho e de estudos.
Alimentos do seu cotidiano, como pão de queijo, churrasco e pizza de calabresa, se tornaram um sonho distante. Dormir sem dor, um luxo. Uma rotina exaustiva, que desgasta, que agoniza. A dor está sempre ali, e os remédios já não resolvem mais. Basta apenas uma cirurgia, que pode ser realizada dentro de 40 minutos.
Apesar de tudo, Marianna, mesmo com as atuais circunstâncias, é movida pela esperança e por sua consciência política. “O SUS é muito importante, mas a gente precisa melhorar as nossas escolhas políticas. O povo precisa de cuidado”. Pergunto a ela o que gostaria de fazer quando a cirurgia finalmente for realizada: “Ficar 100% e poder comer uma coxinha.”
Antes de nos despedirmos, ela clama: “Marca minha cirurgia, pelo amor de Deus, Juliano, marca minha cirurgia. Para ontem!”
Não comentei no início como conheci Marianna, mas a encontrei por um comentário que ela fez na publicação do prefeito sobre o Programa “Fila Zero”. Ela escreveu: “Essa notícia foi só motivo de comemoração aqui em casa”. E lá se vai quase um mês sem novidades, mas torço por ela e espero que a comemoração “de verdade” aconteça em breve.

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