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Assessorias Técnicas Independentes e a luta por reparação e permanência

  • Isabele Galvão e Paulo Henrique Sales
  • 4 de nov.
  • 7 min de leitura

47º edição


Apesar da Política Estadual dos Atingidos por Barragens (PEAB), de 2021, prever o direito às Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), a realidade mostra um contexto institucional marcado por instabilidade e insegurança.


#ParaTodosVerem: Duas mulheres com camisetas brancas em pé, sendo atendidas por um homem de colete marrom, agente da assessoria técnica da Cáritas. O rapaz está com um caderno e uma caneta na mão fazendo anotações. As mulheres observam a ação. Ao fundo, uma rua com paisagem verde.
Equipe Cáritas MG/ATI Mariana em atendimento na zona rural Campinas. | Foto: Jaqueline Ferreira/Cáritas MG | ATI Mariana

Cáritas/Mariana, a primeira ATI brasileira


No dia 26 de outubro de 2016, as comunidades atingidas de Mariana conquistaram o direito à Assessoria Técnica Independente (ATI). À época, a Comissão de Atingidos e Atingidas pela Barragem de Fundão (CABF) mobilizou a comunidade e, com a atuação direta do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), foi realizada uma assembleia em que a população atingida escolheu a Cáritas Regional Minas Gerais como sua ATI. Desde então ela foi ampliando seu alcance, e hoje atende diversas localidades como os subdistritos devastados de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, além de toda a região que ficou conhecida como Zona Rural: Camargos, Bicas, Paracatu de Cima, Borba, Ponte do Gama, Campinas, Pedras. 


Já constituída legalmente, a ATI iniciou uma ação de qualificação dos danos sofridos pelas comunidades. Segundo Marisa Versiani, coordenadora operacional da Cáritas MG|ATI Mariana, a primeira das principais conquistas foi garantir que o cadastramento dos atingidos fosse feito pela assessoria técnica, a fim de orientar o processo de reparação de danos. Uma outra conquista que veio a partir disto foi que, na Fase de Negociação Extrajudicial (FNE), a Renova passasse a considerar o dossiê, produto final do processo de Cadastro, feito pela Cáritas ao oferecer as propostas indenizatórias.  


O dossiê é um capítulo à parte, que vem embasando, desde sua consolidação, importantes avanços dos atingidos: “O Cadastro foi um projeto da Cáritas, ativo entre os anos de 2018 a 2022, com o objetivo principal de levantar as perdas das pessoas que se reconheciam enquanto atingidos pelo desastre da Samarco. Muitas vezes considerando um contexto de famílias que perderam tudo, o dossiê teve um primeiro papel de atender uma dimensão de registro histórico. O principal objetivo era sistematizar, tanto quanto possível,  as perdas e danos suportados pelas pessoas atingidas, para ser um acervo probatório nas instâncias de Reparação. Assim, é também um documento de caráter técnico, que traz metodologias e fundamentações robustas, para ser um subsídio de luta das pessoas atingidas por uma reparação justa”, explica Marisa. Além do dossiê, a assessoria participou ainda de outras conquistas, como a elaboração das 83 diretrizes, que foram judicialmente homologadas,  em que definia-se orientações quanto ao processo de restituição do direito à moradia digna das pessoas atingidas


#ParaTodosVerem: Na imagem, duas pessoas com coletes brancos estampados com a logo vermelha da Cáritas. Ambos estão sentados de costas ocupando as duas extremidades da fotografia e, no centro da imagem, uma senhora, de casado laranja e camisa preta, olhando para baixo no momento da foto, está sendo atendida.
Equipe da Cáritas Mariana na comunidade de Campinas, em Mariana, realizando atendimentos e informando sobre o PTR-Rural, programa para ajudar agricultores e agricultoras familiares que perderam renda com o rompimento da barragem de Fundão. | Foto: Jaqueline Ferreira/Cáritas MG|ATI Mariana

A Cáritas MG foi a primeira ATI institucionalizada no Brasil para atuar em um processo reparatório fruto de um desastre-crime da mineração. Ela faz parte da Cáritas Brasileira, organização criada em 1956 por uma “ação mobilizadora” de Dom Helder Câmara, à época Secretário-Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). É também uma das organizações-membro da Cáritas Internacional, atuante em mais de 200 países e territórios prestando serviços de apoio humanitário.          


As ATIs que atuam nos conflitos minerários brasileiros foram criadas a partir da luta organizada das pessoas atingidas, por meio da reivindicação de um corpo técnico que pudesse acompanhar processos violadores de direitos, principalmente, para reduzir a assimetria técnica entre comunidades atingidas e as empresas mineradoras. Elas proporcionam participação informada, acolhimento psicossocial, apoio técnico e jurídico. Embora exerçam trabalhos semelhantes, diferenciam-se pelas particularidades de cada território, pelas instâncias  a que estão submetidas e pelo momento de implementação do assessoramento. São formadas por equipes multidisciplinares - com profissionais, por exemplo, da área do Direito, Saúde, Meio Ambiente, Comunicação e Assistência Social.


Novos acordos, mais desafios


Apesar do papel que desempenham nos processos reparatórios, as assessorias técnicas vêm enfrentando um constante cenário de instabilidade desde sua origem. Os planos de trabalho são os documentos que orientam e regulamentam as ações das ATIs junto às comunidades atingidas, autorizando legal e financeiramente a execução das atividades. E, considerando os últimos anos, segundo sua coordenação, a ATI de Mariana passou por um processo exaustivo, de escrita e reescrita de vários planos, para conseguir atuar no território. Atualmente, um plano recém criado de trabalho emergencial ainda orienta suas ações. 

Essas mudanças ameaçam a permanência no território. “A dificuldade em manter a assessoria sempre foi uma pauta vigente das empresas, porque uma assessoria forte torna os atingidos fortes na busca por justiça plena,” relata Mauro Santos, 56 anos, morador de Bento Rodrigues, no vídeo “Pela Continuidade da Assessoria Técnica Independente em Mariana”, publicado pela Cáritas MG em seu Instagram.


#ParaTodosVerem: Mauro está em pé, de perfil, usando um paletó cinza xadrez, aproximadamente no meio da fotografia. Atrás dele estão alguns homens de terno, sentados. O governador Zema está presente, no lado esquerdo da imagem, de costas para a foto, vestindo um terno preto. Em frente a ele, uma mulher de paletó branco olha-o como se estivesse interagindo com o governador. Um fotógrafo que faz registros do evento aparece cortado pela imagem no canto direito.
Mauro Santos, representante de Bento Rodrigues na CABF, em cerimônia de entrega da medalha do Dia de Minas em Mariana,  em julho de 2025. Créditos: Nicole Alves/Re.lato

 Com a assinatura do Novo Acordo do Rio Doce, em outubro de 2024, foram instituídos novos prazos para os programas de Reparação. Marisa aponta os prejuízos em torno da temática das ATIs trazidos por este acordo: “A homologação da Repactuação representou um retrocesso para o território de Mariana. Isso porque limitou o escopo de atuação e o tempo de execução do projeto de todas as ATIs da Bacia do Rio Doce, sem considerar as especificidades de cada território. Como justificar o período estipulado de atuação das ATIs para 42 meses, podendo prorrogar por mais seis meses, enquanto as ações e obrigações previstas no Acordo têm o tempo de execução de até 20 anos?” 


Ela também ressalta a falta de espaço para a participação dos atingidos nas novas cláusulas do acordo: “Em termos de desafio, penso que o maior que a gente tem atualmente é fazer com que o que foi estipulado no novo acordo do Rio Doce caiba nos territórios, após 10 anos do desastre-crime. A grande suspeita que temos é que não vai caber. E o motivo já foi amplamente denunciado pelas próprias pessoas atingidas: não houve participação social efetiva no processo de construção das cláusulas. Sem ouvir quem realmente sabe e sente o que aconteceu, não existe reparação justa”. 


#ParaTodosVerem: A imagem mostra Marisa de camiseta vermelha com o joelho apoiado no chão e com um papel na mão. Ao seu lado, um homem também está agachado. Ambos estão cercados por cartazes. Ao fundo, duas mulheres e dois homens das comunidades atingidas acompanham a ação.
Marisa em encontro com Grupo Base (GB) de assessorados discutindo os impactos da repactuação e a retomada de ação da Cáritas em 2025. | Foto: Amanda de Paula Almeida/Cáritas 

Guaicuy, outro território, mesmos dilemas


 #ParaTodosVerem: Diversas pessoas sentadas em cadeiras de plástico em uma quadra esportiva, assistindo a um homem negro, com uma camisa azul, discursar com um microfone na mão. Ao seu lado, Ronald de Carvalho Guerra, vice-presidente do Instituto Guaicuy, veste branco e está de frente para a platéia, que por sua vez aparece de costas nessa imagem. Atrás dos dois, diversos cartazes estão expostos com palavras de ordem  que expressam as palavras de ordem dos atingidos. Em um deles está escrito "Vale não se preocupa com vidas, e sim com lucro!", e assinado pela FLAMA/MG.
População de Antônio Pereira e autoridades em assembléia pelo direito à Assessoria Técnica Independente, após a Justiça determinar a improrrogabilidade do prazo de 30 meses de projeto do Instituto Guaicuy, em fevereiro de 2025. | Gabriel Nogueira/Instituto Guaicuy

Em Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, não houve rompimento, mas a barragem do Doutor entrou em estado de emergência em 2019 por risco de romper. A comunidade local, junto a movimentos sociais, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), fez uma série de denúncias sobre a falta de transparência da mineradora Vale e sobre a ausência da participação popular nas decisões após o estado de emergência. Em abril do ano seguinte, o nível de emergência da barragem sobe para dois, numa escala de três. Isso fez com que 78 famílias fossem deslocadas à força em plena pandemia da Covid-19. Foi esse contexto de emergência que provocou a chegada da Guaicuy em Antônio Pereira em 1º de dezembro de 2022, após dois anos de impasses judiciais para a sua contratação como ATI.  


O Instituto participa também da mobilização da comunidade para elaboração da Matriz de Danos diante da barragem Doutor. Outro relatório técnico e participativo sistematizou os prejuízos causados pela barragem, como a perda de renda, alterações nas relações de trabalho, mudanças forçadas de residência, agravamento e surgimento de novas doenças nas Zonas de Autossalvamento (ZAS). E o documentário “Quanto Vale o que não tem Preço”, produzido pela Guaicuy, levou as violências minerárias em Antônio Pereira ao conhecimento de públicos em outros países como Itália, Inglaterra e Canadá.


Apesar do impacto positivo no território, entre 2024 e 2025 o Guaicuy enfrentou oito demissões e mais 13 profissionais foram colocados em em aviso prévio, que foram demitidos em março. Essa redução de equipe aconteceu por conta de uma decisão judicial que determinou que o prazo de 30 meses previsto no Plano de Trabalho inicial da assessoria técnica não fosse prorrogado, fazendo com que o Instituto passasse por um processo de desmobilização, afetando diretamente na continuidade do processo de assistência, que se torna para a comunidade uma forma de acolhimento e denúncia de danos.  


Hariane Santos Alves, coordenadora de comunicação social da Guaicuy, destaca a relação de proximidade com os atingidos: “Esses profissionais atendem a comunidade tanto individualmente como coletivamente. No núcleo familiar, tanto dentro do escritório quanto dentro da casa dessas pessoas ou no caso das pessoas que foram removidas da zona de auto salvamento. A gente vai até elas ou é online, se não, como a gente vai entender a dimensão dessa dor?”. 


#ParaTodosVerem: Hariane está de pé com uma camiseta azul estampada com a logo e nome escrito do Instituto Guaicuy e seu crachá pendurado no pescoço. Ao fundo, uma estante repleta de livros e objetos decorativos.
Para Hariane Santos Alves, coordenadora de comunicação social da Guaicuy: “a proximidade e o contato direto com as pessoas atingidas são fundamentais". | Foto: Paulo Henrique Sales

A decisão foi revertida em 07 de maio, mas o cenário de instabilidade continua rondando a equipe de ATI. Mesmo com um plano de trabalho estruturado e encaminhado para as instituições de justiça responsáveis por avaliar e aprovar a documentação (Ministério Público e Defensoria Pública), o clima é de incerteza. Mais de quatro meses após o encaminhamento dos documentos, o instituto ainda aguarda a sua aprovação e convive com a possibilidade de falta de recurso para dar andamento às atividades.


As incertezas, aliás, fazem parte de uma história de violação dos direitos às ATIs. A Cáritas MG passou por cinco avisos prévios entre 2024 e 2025. O último aviso prévio, em abril de 2025, não foi revertido como das últimas quatro vezes anteriores e, no dia 29 de maio de 2025 a ATI teve todo o seu corpo técnico que atuava no território desmobilizado, retornando apenas em julho. Segundo Marisa, a interrupção dos trabalhos técnicos em campo, imposta por esse contexto e pelo período de dois meses, coloca em risco a relação da assessoria com os atingidos. “A gente observa que houve uma desmobilização nossa no território. A gente ficou distante das reuniões, dos acompanhamentos com as pessoas atingidas e isso é muito prejudicial porque há uma fragilização do vínculo de confiança. [...] Muitas vezes, os atingidos entram em contato pedindo o assessoramento e, por mais que a gente tente não pessoalizar, esse vínculo de confiança também é construído [...] nas individualidades.” 




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